Capítulo 1 - O mago e a primeira chave
"O amor é a chave de ouro que abre todos os corações."
Orison Swett Marden
Acordar de madrugada, tomar um duche frio, calçar as botas e a roupa de sempre. Mama preparava o desjejum, enquanto papa desfrutava os últimos minutos nas haste de madeira.
O primeiro a me dar bom dia no trabalho era Zuli, o melhor dos machos e mais educado, é claro. Foi criado por mim. Praticamente nascera comigo, mas hoje tinha mais que uma trajetória a meu lado, tinha um lugar em meu coração.
-Olá garoto. Como foi sua noite? - eu fingia ouvir uma resposta de meu cavalo, mas não importava não haver uma de verdade, porque meu subconsciente era generoso em arranjar opções de respostas dignas de um cavalo.
A prosa continuava enquanto preparava a montaria da duquesa. Era dia de passeio e, ainda que ela levantasse apenas na hora em que eu estava almoçando para tomar seu desjejum, com certeza exigiria a égua Rayla em perfeito estado.
Eu tinha sorte da pequena ser chegada nos pelos de Zuli, assim ele me ajudava a adestrar a bicha. Como era bonita. Pelo branquinho, escovado, de crina lisinha e penteada em ondas, as patas como pompons, de maneira a trotar como uma lady das cavalarias. Uma verdadeira passista de crinas. Não era à toa que Zuli se enroscava com ela. Ele bem que tentava esconder, mas não tinha como, éramos amigos e eu era como o seu mestre, médico e o que mais precisasse ser.
-Vamos campeão? Sua namorada precisa chegar intacta e ainda não fui até a tenda, buscar as compras de mama. Não posso atrasar.
Zuli cavalgava com a perfeição dos cavalos guerreiros de batalhas, que chegavam aos ouvidos de nosso povoado, mas nunca passavam, verdadeiramente, por lá.
Eu sonhava ser guerreiro e enfrentar exércitos, em cima de Zuli, com seu pelo negro reluzindo e suas patas trotando a esmo, literalmente. Em minha mente vinham diversas imagens de uma batalha qualquer, em que eu era o maior dos guerreiros e empenhava uma espada a bainha, melhor e mais digna do que a de Arthur. Não poderia haver maior realização para um homem, mesmo sendo apenas um sonho, ainda mais quando se era um cocheiro.
-Patrick! Patrick! Venha até aqui!
Era Susana, me chamando para uma das missões amorosas que ela, certamente, sabia que eu não aceitaria.
-Precisa de mim? - perguntei quando vi a carta em suas mãos.
-Por favor, irmão. Thomas estará na alfaiataria esperando por ti, não custa a mais dar um regalo desses a tua irmã, custa? - ela sorriu, sabendo que seu sorriso quebraria qualquer repulsa de ideia minha. Peguei o papel, bufando.
-Ora, está bem! Mas não pense que voltarei a... - ela beijou o meu rosto e saiu saltitando com suas longas tranças vermelhas. Era golpe baixo fazer isso com o irmão primogênito e aquela danada sabia de meus fracos por rostos de donzelas apaixonadas, ainda mais quando possuíam os olhos de minha irmã, tão parecidos com os de todos em minha família.
Fui até o povoado, acompanhado de Zuli. Seria mais um dia como todos os outros, não fosse pelo que encontrei no caminho.
-Moedas para um viajante. Moedas para um viajante. - Ora, não era difícil ver viajantes passando ao redor de GreenVille, mas, em geral, não era natural que fossem tão mal vestidos e velhos. Senti uma grande pena do ser em minha frente, como Zuli nada disse, paramos.
-Precisas de ajuda monsenhor?
-Oh rapaz, estou com cede e nada tenho moedas para trocar por água, terias uma ajuda? Apenas uma moeda de bronze, para dar-me?
Desci da montaria para averiguar de perto o velho, não me parecia desconhecido por inteiro. Parecia que estava escondendo seu rosto com o grande capuz negro.
-Não sentes intenso calor sob o sol das tardes, usando o capuz monsenhor?
-Ora... - ele pigarreou - estou protegendo meu rosto e minha cabeça justamente desse sol, caro rapaz.
Sem saber se deveria confiar ou não, mas vendo que Zuli não fazia objeção - a opinião dos animais é importante quando devemos fazer julgamento da alma de um viajante - resolvi dar-lhe ajuda.
-Tome essas moedas. - estendi uma moeda de bronze e duas de prata, com o que o viajante poderia passar dois dias na cidade. - E leve isso consigo. - estendi um bebedor em forma de adaga, para que pudesse saciar sua cede.
O homem parecia emocionado, curvando-se diante de mim e agradecendo com veemência, o que achei um absurdo.
-Ora, levante-se monsenhor, não é necessário tanto, por favor...
-Não, não, perdoe-me alteza, perdoe-me. Por favor, perdoe-me. Deveria ter demonstrado minha reverência assim que o avistei, perdão por duvidar de que se tratava de ti alteza, perdão.
-Levante-se bom homem, vamos. Eu não entendo nada do que dizes, o sol deve estar acabando com seus miolos há dias, se esse pequeno raio da manhã já lhe deixa nesse estado.
-Oh senhor, não estas compreendendo minha devoção. Creio que não compreendes.
E eu realmente não compreendia. O que leva uma pessoa a sair pelas estradas chamando cocheiros de "alteza"?
-Meu senhor, leve-me até a sombra fresca de uma árvore, para se cumprir a profecia.
Profecia? Que negócio é esse de profecia? Eu fiquei completamente confuso. O homem estava exaltado e realmente precisava de descanso, resolvi levá-lo até uma árvore qualquer, estranhava Zuli por estar em silêncio e ele percebia, porque nem me olhar nos olhos olhava.
-O que há de errado garotão? - perguntei em sussurro para ele, que nada falou (ou melhor dizendo, meu subconsciente não teve criatividade para criar uma resposta a altura de Zuli).
-Oh, obrigado meu príncipe, obrigado.
-Não diga uma tolice dessas monsenhor! Se um aldeão ouvir o senhor a chamar-me príncipe, seremos os dois condenados a forca.
-Não alteza, ouça-me, escute a este velho, por favor.
Eu não tinha escolha. Minha cabeça doía, eu queria entregar a carta e buscar as compras, voltar para o passeio de nossa senhoria e descansar mais a tarde, com um banho no lago.
-Diga de uma vez, estou apressado e não posso perder o meu dia de trabalho com um homem que delira por culpa do sol.
-Sei quem és. És o filho do cocheiro.
-Isso não há dúvidas. Agora podemos continuar nossos caminhos...
-Não - ele segurou o meu braço e senti a pele formigar, como se começasse a se dissolver, o que fez com que eu me afastasse imediatamente.
-O que pretendes?
-Tu não és legitimo de teu pai, meu príncipe. Foste encontrado quando era mui jovem, na beira do lago, na região das montanhas altas - o velho apontou as montanhas. - Além daquele vale, depois das sete colinas, há um lugar amparado pela fúria e, ainda além, há uma terra de gigantes. Sua majestade está destinado a retornar para seu trono, que fica adiante da terra dos gigantes, em NorthGarden. Lá espera por ti a princesa prometida, em um jardim secreto, dentro de suas terras. A jovem Anabelle está presa no jardim há quase cem anos, mudando sua forma de geração em geração. Dizem, que agora está mais linda do que nas outras, pois voltou a esperar pelo príncipe que a libertará. Voltou a esperar por ti, meu senhor.
O homem voltou a fazer uma reverência e me deixou pasmo, de boca aberta. Como poderia ser verdade um conto como esse? O que haveria com esse homem para fazer-me de pardo diante dele?
-Monsenhor, está em péssimas condições. Definitivamente, precisas deitar-te e descansar esses miolos.
Eu me virava e pretendia sair de onde estava, quando uma barreira foi criada diante de mim, de Zuli e do velho homem, que já não usava a túnica. Olhei para aqueles olhos, que pareciam duas pedras brilhantes, em um tom escarlate muito forte. Era um mago?
-Estou a falar seriamente meu príncipe. Teus pais não tiveram escolha, senão abandonar-te em terras distantes, para que a profecia fosse cumprida e sua força protegida. Liderarás um exército e encontrarás as sete chaves do Jardim Secreto, para libertar a princesa Anabelle, amor de tua alma. Lá terás a resposta para todas as tuas perguntas e lá, encontras para o teu povo a liberdade. Terás de fazer uma escolha e não haverá mais nenhuma maldição nos séculos que sucederão.
-Estás, definitivamente, louco. - eu estava tentando manter o controlo, mas aquele homem era demasiadamente tolo para pensar que me faria acreditar em suas histórias mágicas. - Abra esta barreira, vá embora e leve consigo minhas moedas todas, se quiseres roubar-me, pois sei que és mago.
-Sou um protetor de chave, majestade. Há outros 7 como eu. A mesma aparência, os mesmos olhos, em diferentes formas, em lugares distintos. Tu não terás maiores problemas, depois de formares teu batalhão. Há três homens que farão parte de tua esquadra e um deles verás no mesmo dia em que receberes a primeira chave. Tomes demasiado cuidado em seu caminho meu príncipe. Se não possuíres as sete chaves, intactas, não cumpriras o que é dito.
Minha paciência tinha limites. Zuli estava calado observando, mas eu sabia que ele não poderia estar em perfeito estado ou já estaria louco, dando coices no mago, por mim.
-Cale-se, não quero mais nenhuma dessas brincadeiras.
-Eu provarei para ti que falo a verdade, mas precisas ouvir-me. Ouça, apenas ouça, todas as minhas palavras, depois terei meu destino cumprido e tu seguiras o teu, meu bom príncipe.
-Já chega! Basta! Abra esse escudo!
-Sou o mago Michelin, não me disfarço com rostos, mas sim com meu capuz. Os próximos magos não estarão em sua forma, então deverás buscar-los pelos nomes dos três mosqueteiros franceses, há um livro do futuro na antiga sede de Gaya, mas este só abrirá com a lágrima na voz de um rebelde. Depois de encontrar quatro chaves, haverá mais três magos. Dois serão gêmeos, o último sempre estará contigo.
-Não estou entendendo nada, tens noção do que dizes?
-Apenas ouça senhor. Não temos muito tempo. - ele tremia e olhava para os lados, com muito pânico.
-Estás enlouquecendo! Por favor deixe-me ajudá-lo. Zuli, levante suas nádegas fedorentas e diga alguma coisa! - Meu cavalo nem se mexia e ainda tinha coragem de me olhar com irritação. - O que há contigo Zuli? - eu estava ficando nervoso, mesmo.
-Príncipe Patrick, - o homem segurou meu braço, dessa vez com um tecido enrolado nos dedos, para não machucar-me - há uma fada. Uma grande fada azul, Milena. Ela é a fada da destruição e enfeitiçou sua princesa a há dez anos vezes dez, por inveja da beleza de Anabelle e por ter sido deixada no altar, por ti. Para salvar sua dama, terás de enfrentar Milene e seu exército grego. Ela vem com a magia milenar e com os deuses do Olímpio. Tu terás a proteção dos amigos de Anabelle, que são os seres da floresta, mas nem sempre eles estarão contentes com sua dama, então, deverás redobrar tuas precauções, buscando teu próprio exército com os Reis do Oriente, se for necessário.
-Já chega! - empurrei o homem, que caiu. Eu estava exausto, estava perdendo forças naquele campo, sentia isso. Ouvia e olhava para ele atordoado, principalmente por Zuli, que não se movia.
Mas meu cavalo se moveu nesse momento e, para minha surpresa, a favor do mago Michelin. Fiquei pasmo, branco como cera.
-O que estás a fazer Zuli, porque te postas diante deste homem? - Zuli relinchou, mas não sei o que, exatamente quis dizer. Talvez fosse para eu escutar.
-A profecia está se cumprindo. - No chão o homem sorria. -Deverás matar-me para conseguir a primeira chave. A primeira chave do jardim secreto está comigo.
-Eu quero sair daqui, estás fraco, abra essa proteção, agora!
-Não abrirei, terás de me matar. Quero que morrer por tuas mãos, que são a esperança dessa terra, pois ao libertar Anabelle, nós, os seres do Segundo Mundo, estaremos livres em nossa dimensão. Jamais teremos de aparecer diante dessa raça humana, que é tão cruel. Mate-me Patrick, liberte Anabelle!
-Não quero matar-te a ti e nem salvar a ninguém, quero sair desse lugar!
-Lembre-se da profecia, lembre-se de minhas palavras e encontre todas as chaves. Anabelle te espera ansiosa. Espera há séculos, por ti, mas na quarta chave te encontrarás em sonho.
-Estás pior do que eu imaginava. - Segurei o mago pela gola frouxa de sua roupa imunda. - Tire-me daqui!
-És um bom homem Patrick, tens um bom coração, não se culpe pelo que fará. Eu não sou digno de tanta revolta diante de seu coração e te perdôo.
Naquele instante o homem tirou uma chave de seu bolso. Era banhada a ouro, com um rubi em forma de coração, logo acima de seu segredo. Olhei para o objeto que reluzia e fiquei admirado. Soltei o mago e olhei aturdido, pensando nas possibilidades daquilo tudo ser verdade.
-Estás blefando.
-Estou falando em sério. Tua mãe te dirá o que houve no teu nascimento e teu pai... bem, ele te perdoará por deixá-los. Agora mates-me para sair daqui e leve a chave contigo, Oh grande príncipe de NorthGarden, a terra do Jardim Secreto.
Naquele momento, com aquelas palavras, meu coração acelerou e tudo o que pude fazer foi esmurrar a cabeça do mago, para sair daquele lugar imediatamente. Zuli não se atreveu a mexer uma pata, apenas assistiu meu ataque de fúria. Matei o homem, com minhas próprias mãos e coloquei a chave no bolso. Dei três passos e caí desmaiado.
Capítulo 2 - O destino de um povo
“Temos o destino que merecemos. O nosso destino está de acordo com os nossos méritos.”
Albert Einstein
Quando acordei estava na casa de Thomas, o enamorado de minha irmã.
-Como te sentes, amigo? - ele estava preocupado, minha cabeça doía.
-Estaria melhor com um donzela a cuidar de minha testa cortada. - coloquei a mão no pano, segurando-o e livrando meu amigo do pesar de um doente em sua casa.
-Ora, está novinho em folha - disse ele, bromeiro.
-Onde encontraste-me? Tive um sonho de loucos.
-Encontrei a ti com ajuda de Zuli, que cavalgou sozinho até aqui buscando ajuda. É muito bem treinado. - não que me recorde, talvez pela pancada na cabeça, mas jamais disse a Zuli para pedir ajuda em casa de um alfaiate, em caso de problemas.
-Sim, e onde está meu campeão?
-Descansando a sombra e água fresca.
-Bom, merece. - Tenho de ir, não sei quanto me atrasei com a queda, nem como ela ocorreu, mas tenho trabalho.
-Não te aprece, mandei avisar em tua casa, já botaram o menino Romeo em teu lugar, ficas aqui até te sentires melhor.
-Estou novo em folha como disseste. – levantei-me e pensava em sair.
-Patrick, espera um momento. - eu me virei para Thomas.
-O que é?
O que os meus olhos viram foi completamente surreal. Não poderia acreditar, ainda que eu pretendesse, ainda que meus olhos não enganassem, ainda que eu estivesse mesmo acordado. Por todos os santos pagãos, qual era o problema com meus olhos?
-De onde tiras-te isso?
-De teu bolso, junto a carta de tua irmã. - ele estendeu a chave dourada e entrego-a em minha mão. - Que lha entregou?
-Pela ira de Edwiges, o que isto está fazendo fora de meus sonhos?
-O que disseste? Patrick, isso é caro, de onde foi que roubaste? - olhava para a chave, incrédulo.
-Roubar? - pisquei aturdido e me concentrei na palavra. - Roubar? Eu não roubei de ninguém! - mas eu havia roubado. Se o sonho era real, eu havia... Deus do céu... eu havia matado um homem!
-O que há com você, está pálido. - meu amigo segurou-me, quando viu minhas pernas vacilarem.
-Thomas. - engoli a saliva quente que passou rasgando a garganta. - Eu matei um homem.
Depois de uma chávena de chá e uma boa espiga de milho, terminamos a conversa e eu terminei o relato de tudo o que aconteceu desde que o sol iluminou meus olhos.
-Qual o teu problema, seu louco? Matas-te um homem, fora de seu juízo mental, para roubar-lhe está porcaria. - nós olhávamos a chave.
-Eu não sei o que aconteceu, estive fora de mim. - eu contemplava o rubi.
-E onde escondeste o corpo? - desviei os olhos para ele.
-Não o escondi.
-Como? Não havia sequer sinal de sangue quando cheguei até ti, e o encontrei desmaiado com o corte na cabeça.
-Não viste um homem velho, de vestes em farrapos?
-Não sei do que estás a dizer, para teres uma noção.
-Pelo amor de Edwiges! Se o que estás a dizer for verdade, roubaram o corpo do mago.
-Roubaram? O corpo de um velho? Mas, por que deixaram a ti?
-Tenho mais serventia vivo? Não sei.
-Ladrões não deixariam esta chave para ti. É ouro do mais puro e rubi refinado! Qualquer tolo veria.
-Alguém está a usar-me, mas como? E por que?
-Estás variando das ideias e me levando contigo, preciso de run.
Naquele momento, eu tive uma súbita lembrança das palavras do mago. Quando Thomas disse que eu o levaria comigo, meu corpo teve um choque. "Há três homens que farão parte de tua esquadra e um deles verás no mesmo dia em que receberes a primeira chave". Não poderia ser o que estava parecendo ser, não era o que eu pensava que era.
-Estás branco novamente homem. Estás branco! - ele vinha com o rum. - Beba! - colocou no copo. - E abre essa boca para dizer-me de que lembraste.
-Se o mago estava falando a verdade. Sou um principe. - Thomas engasgou-se com a bebida e riu como uma criança.
-Andaste muito ocupado com as histórias de contos que tua irmã costuma contar, Patrick. Que besteira é essa? Tu és um cocheiro, homem!
-Mas e se... e se for em sério? Se eu estiver com a liberdade de meu povo nas mãos. - ele parecia abismado.
-Olhe, sempre soube que eras idealista, mas daí a pensar em sair para caçar dragões...
-Dragões? - meu rosto iluminou-se. - Oh, que perfeito seria! e sair com um exército e... As palavras do mago!
-Pelos céus nefastos! De que lembraste? - ele bebia sem parar, estava nervoso. Eu entendia bem, se fosse eu em seu lugar, já o teria levado a casa de loucos!
-"Há homens que farão parte de teu exército e um deles é o seu cunhado".
-O que?
-Não era bem assim a frase, mas do que lembro, só poderia ser tu, Thomas!
-Eu? EU? Contigo em uma guerra contra fadas azuis? - Thomas riu debruçando-se e me senti o maior dos asnos.
-O mago disse que no dia em que encontra-se a primeira chave veria um de meus guerreiros.
-Tu está ficando louco e burro, homem? - ele se irritou e levantou-se. - Estás mesmo pensando que podes sair da estribaria e ir para campos de batalha, sem nem saber com empunhar uma espada? E pior, levando-me contigo? Eu, que sou de uma alfaiataria, um homem que só tem forças para carregar caixas de sapateiro? Estás completamente fora de si.
-Thomas, no momento em que sucedeu, eu pensei como tu, mas agora...
-Mas agora, estás visivelmente enlouquecido. Afinal, mataste a um homem desconhecido, que eu nem sei se existe, já que não há provas de que ele estivesse contigo. Roubaste uma chave de ouro e rubis. Bateste a cabeça e ensinaste teu cavalo a vir até minha casa sozinho. De que mais preciso para acusar-te de loucura?
Fiquei desmotivado. Meu amigo tinha razão. Quem acreditaria em mim e na história do mago? Se pelo menos Zuli falasse.
-Se não te crês em mim, vou para casa tratar de minha estrebaria. - saí sem agradecer e cabisbaixo por parecer um completo imbecil.
Zuli e eu nos aproximávamos de casa quando vi a fumaça. Não pude, mais uma vez, crer naquilo que via. Era fogo! Em minha casa! Meu cavalo disparou com meu sinal e logo estávamos em frente a casa. Eu estava apavorado, desesperado. Gritando por minha família como louco.
-Mama! Papa! Susana!
Não havia resposta alguma.
Tirei minha camisa, molhei na água disposta em um jarro, perto da porta e coloquei o tecido envolto em meu rosto, para abafar a fumaça. Corri em disparada pelo nevoeiro negro, tossindo como louco, encontrei Suzana no chão e tirei ela dali, em meus braços. Colocando-a próxima de Zuli. Pela virgem, estariam meus pais lá dentro? Estariam - engoli em seco - mortos?
Meu rosto, perturbado de dor, ao ver minha irmã, estava completamente sujo e suado, mas ainda assim entrei novamente na casa. Pessoas chegavam de todos os lugares para ajudar a apagar o incêndio, fui o primeiro a estar lá.
Papa e mama estavam próximos, um com um ferimento no rosto o outro com um ferimento na perna. Uni todas as minhas forças e tirei-os dali, um de cada vez, sendo a segunda quase fatal para meu pai. Mantinham a respiração baixa, mas estavam vivos.
-Graças ao bom Deus. - minha irmã despertava, enquanto pessoas dos arredores me ajudavam limpando o rosto de meus familiares, apagando o fogo e tentando me acalmar.
-O que houve? - era um funcionário da casa grande.
-Não faço ideia, acabo de chegar.
-A duquesa está a caminho.
-Susana! Por Deus, Susana, como te sentes? - abracei-a com toda a força. - ela tossia, sem conseguir falar. Vi minha mãe mexendo-se e uma mulher tentando ajudá-la a respirar. - Chamem um médico! Alguém chame um médico!
-Patrick. - minha irmã falava em um tom inaudível.
-Susana, não te esforces minha amada irmã, não te esforces!
-Patrick, eles... eles querem a ti. Querem a ti na guerra.
Meus músculos se retraíram e me senti absolutamente indisposto, mas precisava manter minha segurança.
-De que está falando meu amor, fique calma, foi só um sonho.
-Não... não foi um sonho Patrick. - ela se esforçava. - Foi um aviso para ti, caso não te sintas preparado. Uma motivação. Foi o que mandaram dizer. - ela tossia.
-Eu vou matar a quem fez isso contigo e com nossos pais, basta que fale. Um nome, quero um nome!
-Michelin. - Tiraram o tapete de chão que estava embaixo de minhas botas. O que ela estava dizendo? Eu matei aquele cretino, eu... ele sumiu!
-Michelin estava aqui e botou fogo na casa? - eu tentava ser gentil em perguntar-lhe, mas via que de nada adiantava, que tolice.
-Não, eles são o povo de Michelin. Foram mandados como o último aviso. Patrick, eu não sei o que há comigo, me ajude. - ela estava chorando e me partia vê-la assim, a voz sendo forçada... eu afagava seus cabelos, olhando para papa e mama, que respiravam, mas não acordavam.
-Fique calma.
-Não, Patrick, é real. Eles fizeram algo comigo. - meu corpo perdeu o controle, fiquei louco.
-O que se atreveram a fazer contigo Susana, o que fizeram? - eu falava desesperado, passando a mão por seu rosto, procurando ferimentos, algo visível e cruel.
-Minha mente está estranha, Patrick. Eu não sei o que há, eu vejo coisas. Eu vi coisas em um sonho, e agora, se eu piscar os olhos, as imagens e as palavras aparecem, descontroladas... - Não era possível, minha irmã esteve desacordada por minutos! O que houve?
-Querida, foi só um sonho. Fique calma.
-Não! - ela gritava. - Eles estão em minha mente Patrick, estão enviando uma mensagem, eu preciso dizer, não consigo segurar, não consigo! - ela estava grudada em meus braços.
-Susana, fique calma. Fale devagar o que estão dizendo em sua mente. - ela chorava, balançou a cabeça positivamente, mordendo os lábios.
-Thomas... - ela fez uma feição de pavor e fúria. - eles querem você e Thomas... - eu sabia disso, de alguma maneira. - e há mais dois... há mais... eu não entendo, há mais dois homens, mas não sei seus nomes, eles... eles... um está com uma flauta de fole e o outro... o outro... não consigo saber.
-Fique calma. Não force a mente. - Ficamos abraçados um tempo, o fogo diminuía. Susana e eu assistíamos aquela barbárie. Ela estava tão frágil. Logo olhou para mim e fiquei empalidecido com o que disse, entre lágrimas.
-Eles estavam com um dragão Patrick. Eu vi um dragão! - ela cerrava o cenho, com dor. - Tive medo de te perder, de perder mama... o papa queria enfrentá-los Patrick, mas... mas...
Ela chorava demais, não podia conter e eu não queria que ficasse abalada. Logo Thomas chegou, assumindo os cuidados com minha irmã, enquanto eu tentava conversar com a duquesa, inventando uma história qualquer. De olho nos meus pais, que não acordavam.
-Vamos levá-los a casa do capataz. Ficarão lá até que possam reconstruir sua casa.
-Eu agradeço minha senhora, é uma honra estar a serviço de ti e de tua generosidade. - eu tentava ser o criado que esperavam que eu fosse, pensando se um dia fui, realmente, um príncipe.
Estávamos alojados, mama e papa bebiam um caldo preparado por Susana. Estavam bem, mas se recusavam a falar qualquer coisa. Para todos os efeitos, o que ocorreu em nossa casa foi obra de uma panela no fogo e descuido das mulheres. Era menos vergonhoso, de acordo com meu pai, do que o que realmente houve. Embora ele se negasse a dizer o que era, sem saber que Susana já havia me dito.
-Papa, quero que saiba que pode contar comigo e que me punirei eternamente por não estar em casa quando...
-Tu nada poderia fazer, Patrick. És fraco e também és tolo. Tua mãe e irmã são duas submissas descuidadas. Não haveria o que fazer. - ele estava irritado. Falar mal de nossa família era sinônimo de fúria.
-Entendo papa. Mas te peço, encarecidamente, que perdoes-me.
-Tens meu perdão. - ele disse, indiferente.
A situação estava caótica. Thomas ficou conosco, em meu quarto. Era um homem a mais, e como morava sozinho, não haveria problema. Embora papa reclamasse da reputação de Susana, convencemo-lo de que seria a melhor opção para todos. Ele reinou, mas consentiu.
-Thomas, preciso te confidenciar.
-Já sei demais de ti. Por hoje basta.
-Não, Thomas, estou sendo franco, escute-me!
-O que queres, afinal? - rendeu-se ele.
-Susana está tendo visões e ouvindo vozes, pelo que entendi.
-Deus do céu! E por que só me dizes isso agora, homem?!
-Ela sabe do povo que te mencionei, aquele do...
-Oh, não, de novo não! - ele se virou e ficou emburrado, chacoalhei-o nas tiras de madeira.
-Ela falou que um dragão botou fogo na casa, entendes? Um dragão! Ela falou que me querem e que... querem a ti comigo, ou vão continuar o serviço. Dizem que foi um aviso.
-O que? Isso é absurdo! De onde inventaste isso Patrick, você enlouqueceu? - ele não me creia, o que me deixava louco de ódio.
-Thomas, deixa de ser asno e me ouça. Devemos encontrar mais dois homens para compor o grupo e partir, o quanto antes. Tenho cavalos suficientes.
-São da duquesa Patrick! Estas querendo roubar a tua senhora?
-Eu jamais tive essa intenção, é um aluguel.
-Um o que? Ora, pelas chagas de Cristo! Tu estás pior do que imaginava! Sabes que eu deveria temer a ti? És um ladrão, mentiroso e pior, se for confirmado, és um assassino!
Me senti o último dos homens, mas Thomas tinha razão. Como me transformei tanto assim? O que eu poderia fazer? Era loucura. Pura loucura! Eu queria acordar daquele sonho horripilante.
Em um mundo paralelo, nos sonhos de Susana...
-Quero que seja uma boa menina e digas tudo o que ouvires, assim como eu vos digo, compreendeste? - ela estava amarrada e a senhora baixa, de cabelos roxos, falava apontando uma varinha para seu rosto, que assentia. - Ótimo, és uma excelente dama Susana. Quando tudo acabar, assumiras o reino, com teu irmão e até poderás ser a prometida de Thomas, o bravo.
Agora venha. Vais ver a nosso mundo e saberás como ele deve ficar, quando for a hora certa. Te levarei por viagens assim todas as noites e serás a melhor das rainhas. - a mulher sorriu animada.
Elas flutuavam por um pasto gigantesco, até que chegaram em um lugar surpreendente, em que havia uma cachoeira gigantesca que escorria uma água em tom esverdeado e azul, límpida. Enquanto isso, sereias pulavam com seus cabelos loiros, negros e ruivos na água. Havia homens que tinham a metade do corpo em forma de um cavalo e eles corriam por uma pastagem bonita.
Árvores frutíferas de todos os sabores e cores. Apenas de olhar era possível saber o sabor da fruta e nenhuma tinha as formas de laranja ou maçã, eram únicas. Borboletas gigantes batiam asa, assim como insetos diversos.
Mulheres belíssimas, de todas as cores, incluindo azul. E também homens, altos e baixos, gordos e magros, com olhos que brilhavam. Ursos, tigres, gatos e porcos, haviam tantos animais que era impossível contar. Folhas passeavam no ar, conversando com o vento e com a água. E dragões descansavam na sombra. Cavalos, aos montes corriam livres.
Magos e bruxas, deuses e deusas. Todos juntos em uma festa com mesa farta. Prata. ouro e bronze, para todos. Um paraíso.
E então Suzana se viu sentada em sua cama novamente, com a coberta em seu corpo que suava. Chorando.
No Jardim Secreto
Anabelle já não conseguia mais dormir. E nem queria. Era tempo demais deitada, ou presa. Esperando, esperando e esperando.
Não era uma questão de seu príncipe estar ali, perto, para poder revê-lo, pois era um feitiço, um encanto e... ela teria de esperar o tempo necessário para que fosse quebrado.
Se fosse a Bela Adormecida, pensava ela com seu conhecimento milenar, estaria dormindo e nem veria o tempo passar, mas como era a princesa Anabelle, teria de nascer e morrer por dez anos vezes dez. Sozinha, trancada em um Jardim Secreto, dentro de GreenVille, no Mundo Paralelo.
Maldita fada! Ela lembrava que em seu tempo de glória, ao lado de seu príncipe, ambos eram amigos das fadas. Mas aquela Milena, aquela invejosa... Sim, era maldita! E pagaria caro por ter arrancado a eternidade de sua vida, a liberdade de seu povo e, principalmente, a presença de seu amor. Embora, Anabelle soubesse que havia algo que aquela bruxa, em corpo de fada, jamais iria arrancar: a fidelidade de seu amor e de seu coração.
Continua...
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