Reinações Múltiplas: Último Romance
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Último Romance



"Eu encontrei, quando não quis mais procurar o meu amor"


Ele estava em casa. Dormia como uma pedra até sentir o ouvido vibrar, lá no fundinho do subconsciente.
Imaginava que o despertador não poderia ser tão cruel com um pobre homem, em pleno domingo de manhã, principalmente após uma noitada em Copacabana.
"Não Rodrigo, não levante", era a parte preguiçosa do seu raciocínio lógico dizendo para seu corpo continuar repousando, mesmo diante da passeata que os zumbidos externos faziam em sua cabeça.
"Blim Blom". Não, não era o celular. Era a porta.
"Levante Rodrigo, levante", era o anjinho, que ele odiava por sinal, falando para despertar e atender fosse quem fosse, por uma questão de costume e bons modos, mesmo com a passeata que os zumbidos externos continuavam fazendo em sua cabeça.
"Blim Bom".

Aquilo era uma campainha ou uma bomba destruidora de neurônios irracionais despertos no sono? Ele não tinha muita certeza, mas precisava estudar o assunto, assim que se recuperasse do ódio que crescia em seu âmago por ter de levantar da cama - o que era pior - por insistência alheia.

Bocejou de um jeito que fez o bafo inundar o ambiente e coçou a cabeça cheia de cabelos ruivos, assim como o queixo, com a barba ruiva e grossa, abrindo os braços com preguiça, logo em seguida. Agora estava sentado na cama e os olhos castanhos piscavam tentando situar seu cérebro.

"Blim Bom".

Ah sim, ele estava acordando por um motivo, o que quase havia esquecido por sinal.
-Já vai!

Gritou com a boca se enrolando na língua e a língua se enrolando na boca.
Um dilema lhe afetou de ímpeto: banheiro ou porta? Porta ou banheiro? Banheiro. Não sabia quem era na porta, mas que esperasse. Era domingo, e os domingos são dias santificados pelos músicos que trabalham na noite. Principalmente se o músico ficou acordado até às cinco da manhã, depois de um pileque digno de estrelas do pop internacional. Sorte dele não ser mulher, nem loira, nem pop, tão pouco precisar usar ou não usar calcinha, ou teria aparecido em manchetes de fofoca nas revistas mais badaladas do planeta, só pelo número de vodka, tequila, gim e outras substâncias líquidas transparentes não identificadas por seu conhecimento milenar em bebidas alcoólicas.

Depois de se arrastar ao lavabo, lavou o rosto peludo, concentrando-se nos olhos remelentos, com olheiras roxas, repletos de sono. Olhou para o reflexo no espelho e fez a habitual cara de "Garfield na segunda-feira de manhã", embora ainda fosse domingo. Aliás, que horas eram? Lembrar-se-ia de ver o relógio quando terminasse de urinar.

"Blim Bom".

-Já vou - ele gritou - porra. - ele falou baixo.
Não lembrou de lavar as mãos, mas fechou as calças. Deus do céu, ele dormiu de jeans. De qualquer forma, era melhor que atender o visitante inesperado, nu.

Bisbilhotou a visita indesejada pelo olho mágico. Piscou uma vez e olhou de novo, colocando a mão no trinco da porta. Sua testa ficou com uma ruguinha de "que diabos ela está fazendo aqui?". Pensou estar sonhando e sorriu. Olhou de novo e piscou incrédulo. Não era sonho? Tirou o sorriso do rosto. Abriu a porta pensando que estava descalço e o chão estava frio e que, se sentia o piso gelado, devia estar acordado.

-Desculpe. - ela estava sem graça por algum motivo e mal esperou ele se apoiar na porta para não cair, quando falou a palavra estranha de oito letras. A cabeça dela pendia entre o levantar de olhos e o abaixar do queixo, aparentemente tímida. - É que...

Espera. Ela estava mesmo na sua porta? Era impossível, o que na verdade, era bom. Afinal, se ela estava ali, sem estar ali de fato, era porque ele estava sonhando. Ou, na pior das hipóteses, estava alucinado vendo uma visagem. Se bem que visagens geralmente são de fenômenos sobrenaturais e ela estava viva, com a alma no corpo. Não estava?
Ele não tinha certeza de que estava bem. Ninguém que é acordado de porre, no domingo de manhã, pode ter certeza de algo além de que tem uma bateria do Salgueiro destruindo qualquer parte racional do cérebro, mais precisamente, no canto superior esquerdo dos tímpanos.

-Bem, é que eu precisava pedir desculpas pelo mal entendido de ontem.

Ela estava mesmo em sua frente. Soube disso pelo perfume inebriante e característico, que apenas ela podia possuir. A fragrância devia ser exclusiva e levar seu nome, porque ele, definitivamente, não confundiria aquele perfume.
É claro que ele não saberia que um corpo poderia ter aquele perfume e nem descobriria a fragrância em vida se não tivesse trombado com ela pessoalmente no dia anterior, mas ainda assim, era um calor que apenas aquele perfume exercia sobre a mente de um romântico. O aroma era tão bom que devia curar câncer. Ele nem sentia mais dores na cabeça pra falar a verdade. Na verdade, ele não tinha certeza de que havia uma cabeça em cima de seu pescoço, embora tivesse vergonha de colocar a mão nela para comprovar a suspeita.

Espera. Ela pediu desculpas?

-Você... - ele olhava para ela com muita intensidade, sem se dar conta do minuto que havia passado desde que abrira a porta. Agora tinha até mais atenção na moça, pois saia aos poucos do devaneio, entrando na vida real - É você mesmo? - perguntou intrigado e grogue.

-Sim. Bem, eu... - ela mexia as mãos freneticamente, sem perceber que os pés balançavam o corpo de um lado para o outro, nitidamente nervosa - Me desculpe por te acordar, eu não tinha intenção quando cheguei aqui, quer dizer, eu tinha, mas... não, não tinha, eu... bem... O porteiro foi gentil e eu não tenho muito tempo aqui, quer dizer, não que eu não fosse aparecer depois se você não estivesse aqui, mas... bem... - ela ficou impaciente com a própria fala - Me desculpe.

A mulher de cabelos cacheados negros, com olhos castanhos intensos e lábios rosados, levemente carnudos, estava bem ali, em sua frente. Não tinha os gestos do dia anterior, com soberba e jeito esnobe. Era outra pessoa? Ele estava sonhando, não estava? Não, não estava. O perfume. O perfume era real.

-Não estou acreditando. - ele dizia olhando fixamente para os olhos dela, que ficava cada vez mais vermelha, inconscientemente. - Você... eu... você - ele estava tentando pensar e juntar peças, ela ficava envergonhada por pensar que o homem em sua frente não conseguia sequer acreditar que uma mulher como ela fosse capaz de pedir desculpas quando errava. Estava aflita, desesperada para ouvir um 'ok, te desculpo', mas a fala não viria, no fundo ela sabia.

-Bem, eu não vou insistir, nem quero te... - ela pensava em dizer que não queria incomodar, mesmo sabendo que acabara de acordar um músico no domingo, o que era imperdoável. De qualquer forma, ela não pode terminar de falar, pois Rodrigo acordou do transe, de repente, e pediu que ela entrasse.

-Não, não tem problema. Entre, por favor, que cabeça a minha. - ele bateu na cabeça, em um gesto automático. Resolveu levá-la logo para dentro, assim voltaria ao banheiro e escovaria os dentes, afinal estava se sentindo péssimo em falar para dentro, tentando não misturar o perfume delicioso dela, com o bafo de 'acabei de acordar' que teimava em assombrar os reles mortais. Em especial, os mortais de ressaca. Ressaca? Água.
Ele precisava de água.

-Eu não quero incomodar Rodrigo. - Rodrigo? Ele ouviu direito? Como... como... como ela sabia o seu nome? Deus do céu, ela estava na porta de seu apartamento, ele nem havia se dado conta.. mas... como?


-Acho difícil, você já me incomodou. Por favor, entre. Eu quero entender o que está acontecendo e temo não conseguir ficar de pé por muito mais tempo. Por favor. - ele fez um gesto gentil convidando-a a entrar.


Rodrigo era direto demais para a sensibilidade da moça. Ela lembrou que o músico foi assim no dia anterior, também. Sentiu uma dor no corpo, como costumava ter sempre que se sentia atingida por uma fala ríspida masculina.

-Tudo bem. - era melhor entrar e explicar o texto gigantesco que ela ensaiou em casa, só para desencargo de consciência... e uma aparência melhor que a de uma mulher que gagueija na hora de pedir desculpas.

A mulher vestia um casaco inglês sobre o que parecia ser um vestido preto, embora pudesse ser uma saia que atingia até abaixo dos joelhos. Os sapatos de salto deixavam-na um tanto quanto maior do que o rapaz. A cor do casaco era bege e Rodrigo, sinceramente, achou que aquele tom combinava com ela. A cor da pele morena tinha algo de interessante que ele não conseguia contrastar nitidamente naquele momento, já que se concentrava em unir esforços para deixar de admirar a linda timidez feminina nos gestos da mulher que entrava em seu apartamento.


-Aceita um café? Eu acabei de acordar... Oh, por favor, sente-se. - ele puxou a cadeira, olhou para o relógio quadrado de números romanos que estava pendurado a parede da sala, era hora de almoçar e ele nem sequer havia dormido quatro horas. - Se puder esperar só um instante, fique à vontade. - Amarante deixou a moça sentar e entrou rapidamente em seu banheiro.
-Obrigada. - ela se posicionou elegante na cadeira, observando seu redor e reparando na leve bagunça do apartamento masculino. Enquanto batia à porta, por um momento, ocorreu-lhe que Amarante pudesse estar acompanhado, vendo o apartamento, era praticamente impossível que estivesse. Lenah voltou a ruborizar, imaginando a cena que poderia ter presenciado. Não, não podia ser, afinal ele vestia jeans e ninguém que acorda com jeans passou a noite... oh céus, ela não criaria hipóteses diante de uma calça jeans masculina, nem que fosse assim tão xadrez, desbotada e amassada, ou que combinasse com a camiseta, igualmente amarrotada e vestida do avesso. Quando foi que ela reparou em tudo isso mesmo? Tolice. Lenah riu sutilmente, reparando nos móveis rústicos.

-Eu vou até ali preparar duas xícaras de café, mas podemos conversar enquanto isso. - saiu do banheiro enxugando as mãos nas calças. O músico mexia nos cabelos vez ou outra, em um tique de nervosismo disfarçado, que os homens embaraçados com mulheres intrigantes costumam ter. Na verdade, ele ainda estava tentando processar aquele momento para saber como agir corretamente. Ir ao banheiro e falar "meu Deus do céu", apenas com gestos labiais, arregalando os olhos e enxugando um suor imaginário não era necessariamente uma atitude de desespero, ou era?

Lenah Muller. Uma das maiores atrizes da atualidade. Jovem curitibana que havia desabrochado nos palcos do Festival de Teatro da cidade e arrebatado os olhos de empresários americanos, conquistando a América. A morena representava a cultura do cinema nacional muito bem no exterior e, embora as tendências de produção nas quais participava fossem de extrema vertente americana, sobrava espaço até para os projetos experimentais europeus.
Sua voz como atriz tinha peso lá fora, não apenas pelo sucesso de bilheteria em seus cartazes, mas pela crítica especializada. A curitibana tinha fãs em todos os cantos do planeta, pela atuação surpreendente em gêneros de ação e por seu comportamento social. Ao menos era o que Rodrigo lera sobre aquela atriz, porque na prática, ela havia ignorado qualquer tipo de relacionamento social, no dia anterior.

Rodrigo Amarante era um músico requisitado e premiado no cenário nacional, inicialmente pela banda Los Hermanos. Nela, ele compunha, cantava e tocava guitarra. O respeito adquirido veio por seus projetos, letras e trabalhos musicais na noite paulista e carioca. Estava vivendo uma excelente fase, a não ser pelo recente divórcio, que lhe rendeu ficar no apartamento do Rio e deixar a recente casa em São Paulo. Conversariam melhor sobre os bens assim que o músico conseguisse se recuperar por completo, o que ele pensava ser impossível e, portanto, ficaria ali pelo resto dos dias. Não que julgasse ter menos sofrimento do que ela na selva de pedras, mas levando em conta que as letras de Moraes lhe deixavam submerso a realidade de um amor de ciclos, em que cada coração vive um sistema de “infinitude” distinta e acaba deixando o outro coração na mão logo que completa o sistema, era difícil não chorar uma noite sim e outra também. Coisa de boêmios.

-O que te deu pra aparecer aqui Lenah?

Ela teve um sobressalto. Estava sentada a contemplar a planta que ficava ao lado da janela. Não havia ar e luz para àquelas folhas, mesmo assim estavam verdejantes e charmosas. A atriz sentiu como se ela própria tivesse caules e fizesse fotossíntese, trancada em um mundo em que as folhas verdes eram tão naturais quanto as de uma planta de plástico sedosa e brilhante. Aparência, apenas aparência, pensou ela, porque o sol e o vento não a contemplavam devidamente.

Espere. Ele sabia o seu nome? Não que Lenah fosse uma completa desconhecida, que trabalhava em uma lojinha distante, em um povoado qualquer, mas... enfim, era difícil se acostumar a ser reconhecida por pessoas que ela jamais imaginaria, principalmente quando a pessoa em questão era um de seus ídolos.

-Precisava te pedir desculpas. - ela respirou fundo, se levantou deixando os pensamentos longínquos e, meio impaciente, foi até a cozinha. - Quero te dizer que, definitivamente, não sou aquele monstro que te tratou com indelicadeza. Na verdade, eu estava completamente irritada por problemas pessoais e descontei na primeira pessoa que vi pela frente. - ela parecia se lamentar profundamente, mal encarando o rapaz, limitando-se a fazer gestos bruscos que demonstravam seu mal estar pela situação.
Ele observava a mulher falar. Lenah soltava tudo de uma vez, como se tivesse um turbilhão de lamentações presas, prestes a virar uma grande bola de úlcera. Aquilo tudo saia depressa, com toda coragem que a moça possuía.
Rodrigo admirou Lenah por isso. Admirou-a por ter coragem. E também parou o que fazia, admirando os lábios dela, que se mexiam daquela maneira suave e furiosa, forte e fragilizada, constante e fragmentada, em um intenso jogo de yin e yang. Ela estava em sua frente, em sua cozinha, prestes a tomar o seu café, em um típico domingo primaveril.
Amarante mal escutava o que a moça dizia - e ela não parava de falar - ele via que Lenah parecia nervosa em ser desculpada por um ato tão tolo quanto era discutir com ele em um elevador por apertar o botão de andares errados. Ela dava importância a um momento banal como aquele a ponto de procurá-lo em sua casa? Procurá-lo no seu canto, no seu beco, no seu casúlo? No seu mundo?
Como seu corpo estava no piloto automático, enquanto Rodrigo olhava para Lenah, buscando pontos de percepção que ficassem desenhados na memória dele, interrompeu a fala da mulher sem se dar conta.

-Como você encontrou minha casa? - ela falava de seu atrevimento em acordá-lo em um domingo quando se surpreendeu com a interrupção masculina. Por acaso ele não estava ouvindo o que ela dizia? Era provável que não. Homens tinham o dom de magoar Lenah, mesmo se não tinham a intenção de ignorar sua fala em um momento extremamente difícil de encarar a vergonha.

-O quê? - Lenah sabia o que ele havia dito, só perguntou por um reflexo, típico da reação feminina ao ser interrompida.
-Eu perguntei como me encontrou. Meu apartamento, meu endereço, onde você arranjou?

Era inacreditável que ele mudasse de assunto daquela maneira e voltasse a fazer café como se ela não tivesse dito nada. Como se ela não tivesse dito tudo o que estava lhe sufocando, há menos de meio minuto.

-Eu... eu... - ela estava atordoada - consegui com alguns contatos.
Rodrigo se voltou para Lenah, olhando por cima do ombro enquanto preparava as xícaras com café.
-Espero que você não tenha amigos no banco.

Lenah ficou olhando para ele, que voltou a olhar para as xícaras comentando a própria piada e falando coisas aleatórias sobre "contatos de artistas famosos". A garota estava sem expressão, dando-se conta da tempestade em copo d'água que ela havia feito. Agora foi sua vez de não ouvir o que ele dizia e se perder em pensamentos. Impulsiva, Lenah sentou-se em uma cadeira da cozinha e gargalhou da piada que já havia passado. Precisava rir ou chorar naquele momento, por simplesmente se sentir tola, entre os lamentos preferiu rir.

Rodrigo sentiu um aperto leve na barriga. Um aperto que seguia pelo pescoço e dava um nó na garganta. Assim que ela começou a crise de risadas o coração dele acelerou. Lenah não era nada tímida quando ria e parecia muito mais linda do que ele poderia descrever algum dia em milênios. Tinha o rosto aberto, a pose descomposta, o corpo curvado tremendo com a felicidade que saia em um simples gargalhar feminino. Ele engoliu saliva e enxugou as mãos umedecidas em suas calças jeans xadrez. Pegou um copo no armário e encheu de água, precisava acalmar seu corpo se queria conversar com ela.

Lenah já havia parado de rir quando Amarante bebia o terceiro copo de água.


-Se beber tão rápido vai engasgar.
Ele sorriu enquanto bebia e teve que parar.
-Se você falar desse jeito, com certeza vou engasgar. - ela riu, lembrando de momentos casuais, algo que não costumava fazer, há meses.
-Meu sobrinho era assim quando pequeno. Bastava que eu falasse alguma besteira enquanto ele bebia algo e, pronto, lá estava ele soltando água pelo nariz.
Rodrigo olhou para a mulher, agora descontraída, e estendeu a xícara de café.
-Açúcar?
-Apenas leite, obrigada. - eles trocaram um breve olhar enquanto Rodrigo entregava-lhe a xícara.

Ela provou o café. Ele também, afinal, não tinha companhia no café da manhã de domingo desde que... bem, ele não costuma tomar café da manhã no domingo.


-Está delicioso. - Amarante arqueou a sobrancelha, olhou para o corpo e depois para Lenah. Soltou uma broma.
-Mesmo? Garanto que posso caprichar mais nas calças, mas, você, definitivamente, fica ainda mais linda quando está envergonhada. - Lenah soltou uma gargalhada mais alta que a anterior, sentia as bochechas queimarem de vergonha e a barriga arder de tanto riso. Amarante bebia o café e contemplava o show de beleza que havia em sua cozinha. Quantos diretores holliwoodianos dariam a vida pela fotografia que ele poderia ter de onde estava, com o close natural que ele dava naquela boca, naqueles olhos? E mais, quem poderia viver a emoção de sentir aquele perfume tão próximo, misturado ao aroma de café fresco...

-Você é sempre assim com as visitas inesperadas? - ela perguntou inocente, puxando conversa, já era hora de se sentir mais segura, menos receosa.
-Só com as que eu não convidei por falta de oportunidade. - Lenah não queria ficar séria, mas o jeito dele olhar seus olhos era intenso demais para, simplesmente, sorrir e aceitar. Amarante deteve-se em estudar cada poro daquele rosto, sem se dar conta de que qualquer fala precedia o silêncio de um olhar perpétuo entre os dois.

Embaraçada, Lenah pigarreou.
-Eu sou sua fã. Simplesmente precisava deixar claro que não era minha intenção ser grosseira, nem com você, nem com ninguém. Até poderia explicar tudo de novo, mas acho que você não iria me ouvir mais uma vez. - ela balançou a cabeça e tomou um pouco mais de café.

-Eu pareço assim tão insensível? Claro que te ouvi e se quiser repetir o que disse posso reproduzir cada palavra no mesmo ritmo que você. - ela sorriu.
-Você é, definitivamente um palhaço. - Lenah subiu os olhos da xícara para os olhos do músico e encontrou-os fixados em si, como os havia deixado. Ficaram observando os rostos um do outro, em busca de algo além dos olhos e da boca, locais de constante contemplação.
Lenah imaginava o que aquela barba ruiva e grosa, espessa e aparentemente suave poderia lhe fazer sentir se tocasse-lhe a pele. O corpo estremecia em pensar. Amarante passou a língua, umedecendo os lábios, era um tanto quanto constrangedor querer beijá-la delirantemente naquele segundo?

-Quer almoçar comigo? Levo um minuto pra me trocar, você pode escolher o lugar. - a fala veio com impulso, para não perder o costume de sentir e, de repente, fazer. A mulher pensou por um segundo, querendo desvendar o que a mente dentro daquela cabecinha ruiva cheia de cachinhos carregava.
-Eu adoraria, mas tenho um compromisso. - ele baixou a cabeça ao ouvir o 'não'. Não sabia se era o que pensava, mas devia ter cogitado isso antes de reparar tanto em uma moça tão... encantadora. É claro que ela tinha alguém. Todo mundo tem alguém, quando você não tem ninguém. - Fica pra outro dia?

Era uma pergunta. As perguntas geralmente pedem respostas, mas o que ele diria a Lenah? 'Sim, claro, vá para sua paixão e volte para mim quando estiver sozinha'?
-É claro. - ele esperava ter finalizado a relação com isso, era um tanto quanto óbvio que a intenção de Lenah era cortar qualquer prolongamento de atitudes, inventando um compromisso qualquer.

-Ótimo. Quando podemos, então? Marcamos hoje pra eu organizar minha agenda.

Amarante levantou os olhos da xícara e viu Lenah mexer na bolsa, tirando uma agenda colorida com desenhos de laços e bonecas.
-Está falando sério? - ele falou calmo, tentando captar.
Lenah tirou o sorriso que havia aberto inconscientemente quando marcou o encontro e levou os olhos de sua bolsa para o rosto de Rodrigo.
-Se você não quiser ou não puder, tudo bem. - Lenah estava arrasada por dentro e aquilo transparecia. Será que ela parecia ser assim tão insensível?

Muller estava ofendida? Era isso o que ele via? Ofensa? Então ela estava falando sério, queria mesmo sair com ele? E ele... bem, era óbvio que ele queria!
-Não quis dizer isso, quer dizer, eu pensei que você estivesse...
-Arranjando uma desculpa? - ela perguntou com sua sabedoria trivial sobre o sexo oposto.
-Na verdade sim. - ele se acalmou percebendo que ela compreendia. - Desculpe Lenah.
-Eu tenho uma reunião com produtores brasileiros hoje, é o único motivo de não irmos. Melhor explicado? - ela tocou a mão dele, inconscientemente, abrindo um leve sorriso.
-Podemos jantar amanhã?
-Que tal almoçar? Tenho agenda cheia no horário de jantar, sinto muito, é por causa do tempo que vou passar aqui. Mal posso respirar com tanto trabalho.

Ele sentia a mão dela na sua e não queria que a tirasse de jeito nenhum.
-Almoçamos então. - eles se olhavam intensamente mais uma vez, foi a vez de Lenah engolir saliva, com o coração bombeando sangue a todo vapor.
-Me incomoda um pouco não conseguir fugir dos seus olhos. - ela falou hipnotizada, sem se dar conta de que estava perigosamente próxima do homem.

-Você é linda demais. - Rodrigo sentia-se um adolescente no primeiro encontro, com as pernas tremendo e vendo a "garota do baile".
-Obrigada. - era cedo demais para Lenah revelar que estava afoita para beijá-lo? - Já disse que sou sua fã? - ela tentou quebrar o clima, tirando a mão de encosto a dele e mudando de assunto.
-É mesmo? É uma honra senhorita Muller. - ele beijou a mão de Lenah, trazendo para perto da sua novamente.
-Estou falando sério - ela sorria - tenho os seus discos e até os vinis promocionais e exclusivos.
-Eu agradeço o carinho e fico muito lisonjeado. Na verdade, eu nem consigo acreditar em você. - ele soltou uma risada larga e máscula que encantou Lenah, que ria também, colocando a outra mão sobre a dele.
-Eu adoro seu trabalho e, se não acredita, pergunte a quem me conhece ou veja minhas redes sociais repletas de citações e indicações, fotos, elogios. É a mais pura verdade.
Ele pensou que jamais havia segurado a mão de uma mulher daquela maneira. Poderia haver uma mão tão completa? A dela era. Enchia sua alma de imagens doces. O cheiro de café misturado ao perfume. Simplicidade e requinte.

-Humm, isso explica o motivo de ter me insultado tão bem no elevador. - o tom foi de brincadeira, mas ela assumiu uma feição de embaraço.

-Me desculpe. - Amarante viu que a piada não saiu tão engraçada.
-Não leve a sério, eu não me importei com aquilo. Não tanto quanto com você aqui hoje, me acordando com a campainha. - Lenah ainda estava envergonhada. Rodrigo ergueu o rosto da moça, segurando o queixo fino e não evitou contornar a lateral do rosto feminino com seu polegar. Lenah fechou os olhos e respirou fundo, era perfeito demais para ser real. Ele lhe daria um beijo intenso naquele segundo, mas ela se levantou.

-Preciso ir, estão me esperando. Obrigada pelo café.
O músico se levantou rapidamente e segurou o braço da atriz.
-Não quero que saia ofendida comigo.
-Não estou. - ela sorriu fraco.
-Posso te buscar amanhã?
-Na suíte do Hilton, por favor.
-Me passa seu número? Não tenho bons contatos para conseguir informações restritas da NASA. - Lenah riu e deu um beijo no rosto de Amarante, ele era encantador.
-Gosto muito de você. - ela disse descontraidamente, como costumava fazer quando gostava de alguém.

Rodrigo envolveu a mulher em seus braços sem pensar em mais nada. Simplesmente precisava testar a química que havia no ambiente, matar a sede que seus lábios sentiam de Lenah. O perfume inundou sua mente, o gosto firme e frágil foi saboreado com prazer, os braços se enlaçaram no corpo moldado e as bocas sentiram a completude dos amantes. Ele já havia se sentido assim? Talvez nunca tivesse sido tão perigoso sentir os lábios de uma mulher, mas ele quis arriscar a vida. Sentia o corpo de Lenah dilatar e era precioso para um homem ter aquele paraíso a sua disposição.
Lenah jamais havia sido admirada e desejada daquela maneira. O homem que a beijava era intenso em todos os sentidos, e a deixava tonta de sensações estranhas, queria mais do que ela poderia oferecer e a instigava a entregar tudo o que não poderia ofertar.
Estavam unidos, laçados, em um beijo.
Estavam perdidos, submetidos a loucura do desejo.
Era o fim para os dois.
Era o início do último romance.

FIM