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Prólogo
Eu senti desde a primeira vez que ela era diferente. Não em um aspecto positivo, admito, mas senti que poderia me surpreender.
Capítulo I
(flashback on)
Sempre que o ônibus amarelo do Colégio Hwertz estacionava em frente ao jardim dos Steves, Anne Spring corria para a janela, a fim de ver as crianças mais velhas conversando, rindo e fazendo muita bagunça. Enquanto seu vizinho, vestido com um uniforme azul, de gravatas vermelhas, entrava no veículo, segurando sua pasta de materiais. A garotinha não via a hora de crescer e pode ir para a escola, como as demais crianças da vizinhança faziam.
-Anne querida, o que está fazendo fora da cama?
-Mamãe, quando eu vou entrar no ônibus amarelo, como o filho dos Steves?
A mãe de Anne tinha cabelos compridos e lisos, que caiam sobre os ombros, em um negro brilhante e encantador. Seu rosto, de pele alva, contrastava com a cor dos belos olhos azuis e os lábios, pequenos e moldados, abriam um sorriso tão altivo, que faziam a mulher parecer uma fada.
-Minha princesinha – disse e abriu um sorriso, sentando-se na cama e batendo a palma da mão aberta, em um típico chamado para a filha voltar a dormir e ouvir sua resposta quentinha, na cama. Anne fez uma careta de quem obedece, mas não queria obedecer e saiu da janela, se enfiando embaixo das cobertas, com seu pijama cor-de-rosa listrado. – escute Anne, daqui há alguns anos você também entrará naquele ônibus e encontrará seus colegas na escola, mas agora você precisa descansar seu corpinho, porque teremos um dia cheio, minha querida. Aproveite mais algumas horas. – uma das mãos acariciava os cabelos ondulados da filha, que ouvia quietinha, embora os pezinhos não parassem de se mexer, ansiosos.
- Eu queria ser grande.
Mag Spring achou graça nas palavras da filha e abriu o sorriso mais radiante, do qual a Anne recordava.
(Flashback off)
O despertador parecia um berrador no ouvido de Anne, ela não suportava aquele som chato e estridente no ouvido, mas se não fosse assim jamais acordaria. Seu corpo reclamava e o braço, esticado, queria esmurrar o aparelho, para que parece de fazer aquele barulho.
Como se não bastasse, antes que o braço alcançasse o despertador, a porta de seu quarto foi escancarada e uma voz de bruxa, que era a de sua governanta Dora, disse em alto e bom tom:
-Hora de levantar Spring!
Sim, ela tinha aula e teria de ir para o colégio: um tormento.
Anne era a típica garota de grupinhos-sem-grupinhos. Andava aqui e ali, fazendo uma ou outra amizade, que duravam o tempo do “oi” e do “tchau”, pra simplesmente pedir licença na fila do lanche. Ou seja, não fazia amizade nenhuma, nem fazia questão. Seu rosto era dono do puro sarcasmo e suas feições eram de uma pessoa irritada, que detestaria ser incomodada.
Claro que Anne não era completamente sozinha, pois havia uma amiga de infância, a Lenah e também um amigo de projetos loucos, o Harry.
Os três mosqueteiros costumavam se encontrar, além do colégio, no sábado à tarde, para atualizar o site que mantinham, no servidor americano: Flyers. Um portal que atualizava semanalmente com prêmios, curiosidades e infinitas notícias para os fãs do filme Back to the Future, o vício do grupo.
Anne, que usava o cabelo preso, em rabo-de-cavalo, além de roupas escuras e maquiagem pesada – com as tradicionais camisetas do De volta para o futuro, é claro, não se relacionava bem com os demais alunos. Era uma pessoa bacana e interessante, pensava Harry Judd, seu melhor e único amigo, mas um pouco retraída e brava demais, pensava sua melhor e única amiga Lenah Muller.
Naquela manhã, as aulas seriam chatas e as companhias piores ainda, por isso Anne não fazia a menor questão em se aprontar no horário. Se ela atrasasse, não conseguiria pegar o maldito ônibus amarelo e, então, ficaria em casa, assistindo a série em desenho de Back to the future, pela milésima vez.
-Droga de babá!
Mas, como sempre tem um porém, a garota não fazia a menor questão de trocar o manicômio que era Hwertz, pelo inferno que era ficar em casa com Dora, a governanta-babá, que seu pai arrumou há tantos anos.
-Ok Dora, eu já vou! – ela gritou com o travesseiro no rosto, a fim de que a governanta não a irritasse com os sermões de “vamos logo sua peste”. Era um tormento viver com aquela mulher.
Anne levantou, se arrastando, seu quarto estava impecável, como costumava deixar. Odiava bagunça, coisas espalhadas, desorganização. Mas não, certamente não. Ela preferia manter todas as maravilhas que sua mãe havia deixado para ela. Desse modo, nem uma poeira poderia mudar o cenário “Mag Spring”, pois aquelas paredes, por mais vazio e mais distância que pudessem significar para a jovem, eram a única lembrança que restava de sua amada mãe.
Os tênis all star pretos estavam a postos, assim como a baby lock vermelha com o Martin Mcfly estampado, o casaco desbotado de gorro e a calça jeans preta. Partiu para o banho, enquanto olhava a combinação de peças que havia separado na noite anterior, todas organizadinhas em frente ao seu trocador.
O quarto de Anne era basicamente o palacete de uma princesa. As cortinas de rendas brancas, sob o tecido cor-de-rosa claro, contrastando com os móveis de madeiras raras, em um branco simples e delicado. A cama era de casal, havia ganho dos pais assim que completou 7 anos. “Agora você é uma mocinha meu bem”, Anne lembrava as palavras de sua mãe quando a cama foi posta ali.
O trocador era, basicamente, um biombo de madeira, com pintura de rosas e flores do campo. O closet repleto de roupas, ainda conservava os vestidos da meninice. Vestidos tão lindos, com laços e combinações de cores deslumbrantemente requintadas, encomendados por Mag Spring para sua pequena princesa Anne.
A delicadeza de sua mãe ainda estava presente em cada pequeno espaço do quarto, conservado e adorado. Ainda que todas as outras mobilhas da casa, assim como os ambientes, tivessem evoluído nos últimos anos, Anne não deixou que nenhum dedo fosse tocado em suas coisas, há não ser o despertador berrante que havia ganho de Harry e Lenah, depois de ser barrada uma semana consecutiva no colégio, pois ela realmente tinha problemas em acordar cedo.
No banheiro individual, Anne tinha a banheira com detalhes em prata e as toalhas com seu nome bordado em um vermelho encantador, sobre o branco. Sua mãe pretendia entregar o enxoval quando a garota completasse 15 anos, mas acabou não vendo nem mesmo os 9 anos completos.
As loções hidratantes e os perfumes também eram ao gosto de Mag Spring, a tão venerada Mag. Toda a vida de Anne era ligada a de sua mãe, seu grande e único motivo de viver era saber o quanto a mãe planejava o futuro da filha. Desde as pequenas e simples coisas, até as maiores possíveis. Mas todo esse amor era parte do íntimo de Anne, pois sua relação social não era muito amigável, nem mesmo a relação com o pai e a babá.
Aliás, ela achava o cúmulo do ridículo uma garota de 16 anos ter uma babá, mas era tão habitual ter a megera gritando pela casa, que seu pai não se desfaria dela tão cedo, por isso, a partir dos 13 anos, o cargo de babá foi suprimido pelo de governanta. O que era absurdo, aos olhos de Anne. Ela mesma era muito melhor na organização da casa do que aquela velha rabugenta, que deixava tudo parecendo um mausoléu, dos mais bregas e cafonas.
Os refúgios de Anne eram, basicamente, seu quarto, vulgo: o intocável; e sua sala de computador, vulgo: máquina para o futuro.
Era trancados lá que ,Anne e seus amigos, organizavam as coisas do site e movimentavam a rede de apaixonados que existia na internet. O site do trio fazia sucesso, embora usassem nomes fakes e identidades, até, bizarras. Fingiam desde suas idades, até suas supostas formações. Mas era por uma boa causa, conseguir os melhores contatos e saber tudo o que poderia ser descoberto sobre a melhor trilogia do universo.
Talvez, no começo, não fizesse sentido para seus amigos, mas ela, que cresceu ouvindo a mãe falar sobre as maluquices do Dr Brown e as aventuras de Martin Mcfly... Bem, certamente seria como estar mais próxima ainda de sua rainha suprema. Jamais deixaria a lembrança da mãe se apagar. Além disso, depois de pesquisarem e se entreterem com o tema, o grupo gostou tanto do filme e das diversões que ele proporcionava, que resolveu fazer uma homenagem com o site.
Não era pra ser tão grande quanto acabou se tornando. A dimensão atingiu fronteiras inimagináveis, foram citados em convenções e descobriram pontos jamais levantados, além de possuírem objetos de leilões, os quais ninguém poderia se permitir comprar, a não ser que tivesse uma fortuna: e Anne Spring tinha essa fortuna.
Mas, é claro que esse assunto não era agradável e falar do pai, por exemplo, um executivo burocrático até os dentes, era ainda mais desagradável. Anne usava o dinheiro com o que achava útil: a preservação da memória de sua mãe.
xxxXxxx
Danny Jones estava muito cansado, a festa havia acabado com seu corpinho. Sem dúvidas estava acabado. A ressaca poderia provocar algum mal estar, ele sabia, mas não estava muito disposto a se incomodar com isso. Afinal, pretendia passar o dia todo dormindo.
O quarto estava a bagunça de sempre, é claro. Meias espalhadas, canecas de cereal, pacotes de biscoitos, caixas de pizzas, garrafas de cerveja, em meio a calças e jaquetas, tênis e cuecas. Um verdadeiro furacão havia passado por ali.
A cama, de solteiro, estava grudada à parede e tinha o formato de uma nave espacial, de cor azul, com contraste de labaredas vermelhas, de sobretom meio laranjadas. O teto tinha uma porção de estrelas que reluziam com efeito de neon, na escuridão do ambiente.
A guitarra vermelha, recostada a parede, ao lado do amplificador, parecia ser o único objeto intocável. A porta do banheiro estava aberta, com um odor desagradável de mofo misturado com bolor. Seu cubículo, ou melhor, seu quarto, era desprezível. Ele não fazia muita questão de ficar em casa e, quando ficava, não arrumava suas coisas.
Danny era o filho do meio, em uma família de cinco irmãos. O mais velho havia se casado, o mais novo morava com seu ex-padrasto e os outros dois dividiam com ele o espaço que, com muito custo, chamavam de lar. Eram apenas os três, se levassem em conta que a mãe ficava em casa apenas nos momentos de folga, o que era raro para uma enfermeira que faz bicos como atendente de lanchonete.
É claro que Danny trabalhava, assim como seu irmão Jack, que era um ano mais velho que ele, mas os dois ajudavam com o básico, pois quem ralava mesmo era a mãe deles. Robert, o irmão de dois anos a menos, apenas estudava. Costumava arrumar toda a casa, mas o quarto de Danny não era passível de ser considerável parte da casa. A bagunça era tanta que ninguém se atrevia a entrar, além dele que... não tinha escolha.
Danny mal pensava no cheiro horrível de chulé com pizza podre, apenas pensava em dormir e ter sua dor de cabeça dilacerada por um delicioso analgésico. Isto é, se encontrasse o analgésico no meio da bagunça!
Com algum esforço, Danny rolou da cama e tentou alcançar a bolsa que estava há um metro de sua mão, jamais conseguiria ativar a força do pensamento e trazê-la para si, por isso se rastejou até ela e procurou, com o tato, pelos comprimidos.
Achou na bolsa: um pacote de camisinha fechado, um aberto, uma usada (eca!), cartão de crédito quebrado, panfletos de propaganda, um convite para a festa da Gio, um tablete de chicletes, uma bala derretida, uma conta de motel, um caderno de colégio (em estado lastimável) e uma cartela de analgésico: vazia.
-Droga. – ele murmurou, com a cabeça doendo ainda mais.
Resolveu estacionar ali mesmo, no chão frio e desconfortável, em meio as meias sujas, e continuar dormindo, quando a porta abriu, as luzes se acenderam e as janelas se abriram.
-Pronto... morri... to no céu... virei anjo? – ele dizia com a cara no chão, babando de sono, os olhos semicerrados, por causa da luz; as palavras saiam lentas e o bafo de cerveja era forte.
-Daniel Jones! Trate de levantar, se arrumar e ir para a escola agora mesmo!
Danny não fazia ideia de que anjo chato falava com ele com a voz de sua mãe, mas sabia que se não obedecesse naquele momento, o “coro ia comer”. Sem pensar muito, respondeu um “ok”, e se moveu como se fosse um sonâmbulo-bêbado-zumbi, tropeçando pelos cantos.
A mãe de Danny estava gritando com ele, enquanto o garoto se apoiava para chegar ao banheiro.
- Fico uma semana sem abrir a porta do seu quarto e quando abro: um tornado passou por aqui, acompanhado de uma tswnami e um furacão Daniel! Que porcaria é essa aqui na sua cama? Mas que coisa, não se pode deixar as crianças sozinhas mesmo, não é? Você é um bebê sem noção ou o que? Não acredito que você está com essa caixa de pizza aqui, faz uma semana que nós digerimos essa porcaria Jones! Você esqueceu onde as meias são colocadas ou o que? Me diga o que significa essa meia fedorenta vestindo o seu abajur? Daniel Jones!
Ela continuou enumerando as atrocidades que encontrava no quarto de Danny, arrumando uma a uma, gritando uma a uma, enquanto ele despertava devagar, com a ducha descendo quentinha sobre seu corpo. Aos poucos a cabeça parou de latejar e ele se concentrou no odor fétido que vinha das coisas podres espalhadas por lá. Nem ele agüentava a desorganização. Costumava ser desleixado com os bens materiais, que para ele, de nada valiam. Por isso se concentrava em se vestir bem e fazer festa, mas não em cuidar das coisas ou pensar nas consequências. Acreditava que os homens haviam nascido justamente para curtir a vida, mais nada.
O banho estava muito gostoso, fazia tempo que não sentia um mal estar ir embora tão depressa. Depois que saiu do chuveiro pensou no que estava acontecendo com mais calma: sua mãe estava gritando com ele pelo quarto bagunçado, seu banheiro estava horrível, sua cabeça ainda vibrava e ele estava prestes a ir para a escola. Opa, escola? Nem pensar!
-Ahhh mãe! – ele saiu só de toalha, com o cabelo bagunçado, os cachinhos caindo molhados no rosto.
-Daniel Jones, eu me mato trabalhando pra sustentar essa casa e te dar regalias, uma escola de alto nível que vai te levar pra faculdade que você desejar e o que eu recebo em troca? Em? Me diz?
-Mãezinha...- ele se aproximou abraçando a mãe e dando um beijo nela enquanto implorava para ficar em casa.
-Se veste logo! Mais cinco minutos e o ônibus passa.
-Ônibus?
-Você está de castigo, sem carro por uma semana.
-O que.. mãe, mãe.. não! Não, mãe... – ele até tentou pará-la, mas a essa hora a senhora Jones já estava descendo as escadas, a caminho da cozinha. Seu único dia de folga e o que ela fazia? Trabalhava! Limpar o quarto do filho era um tormento necessário, que deixava ela furiosa, por sinal.