Tempos. Vivi um tempo e necessitava de um tempo só meu. O destino é sábio e talvez eu seja, realmente, uma boa aluna. Existe um sentimento de entrega que me faz sentir intensa e plena, essa plenitude que encontro nas ruas de Buenos Aires e nos cantos escuros de cada pensamento vão. Me vou, mas volto.
A cada esquina dobrada, me vou. E volto. Sempre voltarei e permanecerei sentada sobre a sacada de um prédio histórico que pegou fogo. Um caos hermoso. Não sei, apenas sinto. E prefiro continuar não sabendo Buenos Aires, prefiro continuar vivendo Buenos Aires. Respirar Buenos Aires todos os dias, mesmo fora daqui. De lá. De onde seja.
Existe uma Buenos Aires dentro de todos nós, porque existe em nós o melhor dos olhares, mesmo quando a paisagem está nublada.
Buenos Aires é para a chuva e para o sol. É para as caminhadas e para os momentos sentada em um café, que vende pizza e o seu jantar. Quero lembrar todos os dias que Buenos Aires não está na Argentina. Buenos Aires está em mim.
Foram três viagens e três momentos. Foi um ano. O ano de Buenos Aires. O meu ano em Buenos Aires. Quero lembrar de cada mirada atrevida ou não, cada palavra dita a meu lado, a minha frente, longe de mim e de cada palavra não dita também. Quero lembrar as palavras não ditas porque o silêncio é o senhor de todas as palavras.
Quero meu momento a cada momento e Buenos Aires é um momento que vivo todos os dias, quando respiro poesia, inspiração, canções. Bem disse o homem que eles, os portenhos, nos buscam e que nós, as estrangeiras, buscamos a eles. Buscamos, de fato, em cada olhar um olhar que seja portenho, que seja tão intenso e tão intensificado de sentimentos quanto os olhos de um portenho.
Índio, loiro, mulato, branco, de cabelos escuros ou claros, de idade jovem ou avançada, de passos largos ou curtos, com cabelos cheios ou carecas, de estatura alta, baixa ou mediana. Assim são os portenhos. Como as brasileiras, são todos em um. Todos os homens do mundo. Com seu futebol, com sua paixão pelo tango, com suas festas madrugueiras, com seus carros dirigindo como loucos, com seu bom dia simpático ou não. Eles são o mundo, porque meus olhos são o mundo. E se meus olhos não os tivesse captado (como câmera alguma faria) lá estaria eu, perdida em uma viagem turística qualquer. Por sorte, muita sorte, sou parte da história dessa cidade, agora. Uma alma a mais, uma vista a mais, um momento a mais. Sou eu e é ela, Buenos Aires. Bonita, hermosa, transparente e colorida. Com seus casais gays e héteros, com seus velhos e suas crianças. Buenos Aires é quente, mesmo no inverno mais duro.
Não por eles, mas por mim. Pelo calor que se reflete em meu próprio corpo sempre que estou com eles, nessa cidade. Não importa que tenha me perdido em ruas sem nomes, entre casas sem números, porque em Buenos Aires cada perca é um ganho. E mesmo quando me perdi, me encontrei. Encontrei respostas para perguntas que nunca fiz e que seria incapaz de formular. Existe algo a mais, algo que vai além dos museus e das praças, algo que vai além das igrejas e dos prédios, que vai além das ruas e dos carros. Buenos Aires nunca seria uma cidade de pedras, porque em cada vão de madeira, em cada pedra há vida e amor.
E descobri que a vida e o amor não estão em Buenos Aires, mas dentro da minha Buenos Aires. Não são todos os olhos capazes de encontrar a Buenos Aires que eu vi e ouvi. Há detalhes que perdi, mas há, sobretudo, detalhes que jamais serão vistos por nenhum outro olhar. Porque meus olhos não buscam Buenos Aires, é Buenos Aires quem me busca. E me encontra. Me faz crescer e entender que há algo além de mim e dela, que nos faz ser uma para a outra.
Estou feliz e o primeiro impacto dessa felicidade é o silêncio de palavras que jamais serão ditas, porque ninguém poderia encontrar palavras para escrever a vida.