Reinações Múltiplas: Capítulo 1 – Um Novo Hércules
ATENÇÃO: Este blog é pessoal e não profissional

Capítulo 1 – Um Novo Hércules

Prólogo

“Os momentos bons, ruins
Os sons os sonhos
O dom de Deus
As glórias, os tombos
A caminhada até chegar aqui
Tudo que eu aprendi, eu entendi
Tentando ser a selva de concreto
Inteiro, perfeito, pleno, completo
O que for meu vai ser meu, ‘tá escrito
Pra sempre, tipo as pirâmides do Egito”

Capítulo 1 – Um Novo Hércules

(Flashback on)

Um garotinho loiro de olhos verdes, segura a mão de sua mãe, enquanto esta lhe arrasta pelas ruas de New York. O olhar dele é atento em todas as coisas, a mãe parece muito apressada e o carrega como um jato, sem perceber que o menino acha graça de seu jeito ansioso de andar e balança todo o seu pequeno corpo, que está pesado pela grande mochila azul e vermelha, irradiando as cores americanas.

Esse menino acaba de chegar à cidade e se impressiona com toda a movimentação. Não está pronto para pensar em futuro e em globalização, porque é jovem demais, tem apenas sete, quem sabe, oito anos, mas ainda assim nota a diferença entre a cidade em que está e a cidade em que morava, por isso suas brilhantes esmeraldas não param de olhar para todos os lados.

Não foi fácil para Daniel deixar a sua escola, seus amigos, sua família e embarcar com a mãe na nova empreitada, porque uma criança não entende de progresso, de oportunidades, de problemas conjugais, mas, ao chegar em NY, quando o menino viu as ruas do Brooklyn pela primeira vez, alguma coisa bateu forte no peito e ele teve certeza que algo dali mudaria sua vida completamente. Era o início do segundo ciclo de saturno.

A mãe de Daniel parou em frente a um grande prédio, construção recente, muitas pessoas ao redor, andando rapidamente para lá e para cá. Tirou de sua enorme bolsa colorida um batom vermelho de tampa escura e retocou a maquiagem ali mesmo, antes de entrar pela grande porta de vidro fumê, que era decorada por uma pirâmide dourada, em ambos os lados da passagem.

Daniel soltou a mão de sua mãe e olhou para ela, que guardava o batom, abaixando a cabeça para ver como estava sua saia caqui com laço de lado e para ver, também, os sapatos pretos lustrados. Pensou estar apresentável e levantou a cabeça, olhando em seguida para o pequenino garoto de cabelos dourados. Ela sorriu ao ver a expressão do filho, “você está linda mãe”, disse ele meio sem jeito, esperando conquistá-la com as palavras. Era a primeira mulher a ouvir um elogio sincero daquela criatura. Ela colocou uma das mãos em seu queixo, olhando francamente para ele e abrindo o sorriso mais lindo que Daniel recordava ter visto em uma mulher e, embora o sorriso tenha sido quente e verdadeiro, nem sempre a vida seria assim.

(flashback off)

xXx

“O que você tem que saber é que eu trampo muito.”

Cabal estava deitado em uma cama grande de hotel, havia trabalhado muito até as cinco da madrugada, depois foi acompanhado até o lugar que a empresa contratante lhe reservou. Ao que tudo indicava, todos os serviços do hotel seriam cortesia, por isso aproveitou ao máximo os caprichos, afinal, não era habitual um estranho lhe tratar tão bem assim.

Acreditava ser uma baita sorte esse tal empresário fantasma que o havia contratado. O cara produziu um evento com o melhor do chamado “hiphop de festa” brasileiro. Ao que tudo indicava, era um magnata qualquer que não queria ser identificado ao artista, mesmo compactuando com o gênero musical e por promovendo uma daquelas noitadas. “O idiota deve sentir vergonha do rap”, pensou Cabal, mas não se preocupou nem um pouco com esse detalhe na hora de fazer o show, já que não seria por isso que seu trabalho deixaria de mostrar a qualidade de sempre e nem ele deixaria de aproveitar o que lhe ofereciam, naquele palácio espetacular.

O rapper sabia que alguma coisa ali estava diferente do habitual, mas sua vida era tão conturbada e aconteciam tantas coisas, que resolveu fechar os olhos e pensar “a questão não correria, mas como você corre”. Foi com humildade até o lugar e desempenhou seu trabalho, mantendo-se disponível aos fãs e amigos que lhe prestigiavam naquele lindo resort, tratando-lhe como um príncipe. E, ainda que fosse estranha aquela história de “príncipe encantado”, o que poderia haver de errado em ser querido e aceito pela sociedade? Resolveu não pensar naquele assunto, ao menos não naquele momento. Estava bêbado demais para isso.

Amanheceu com os olhos inchados, demonstrava uma ressaca daquelas. A cabeça não doía tanto, mas os olhos estavam embaçados e o labirinto embaralhado. Quando olhou para o lado da cama viu uma silhueta interessante, esfregou os olhos e pode se lembrar de que esteve acompanhado por uma loira alta e esguia, durante todo o baile. A missão da noite anterior foi do tipo “quase impossível”, era seu terceiro show da semana e a quinta vez que dava no coro, isto é, se contasse o número de participantes do primeiro ato.

Tudo correu perfeitamente bem na noite do show, agora já era hora de levantar e enquanto se despreguiçava, percebeu que a garota em sua cama não levantaria tão cedo. Seria uma indelicadeza deixá-la sozinha e ir para casa, aliás, quem disse que ele queria ir para casa? Aquele lugar era o paraíso e como ele tinha passe livre, queria aproveitar o paraíso. Balançou a cabeça e abriu um sorriso de “pensamentos tolos”, acariciou o braço da menina e disse que já voltava dando um beijo em sua orelha. Ela se mexeu um pouco, incomoda em ser perturbada no sono, mas continuou dormindo. Ele deu um leve sorriso, tentando lembrar o nome da loira, mas estava difícil.

C4 se levantou a caminho do banheiro, observando a belíssima suíte. Tinha aquela mania desde pequeno, olhar para todas as coisas e perceber seus mínios detalhes, reparando em tudo, principalmente se eram coisas tão bonitas. Tinha que admitir que aquele era um lugar encantador. A sala com sofás ao estilo anos 70, de estampa verde e branca, lhe agradava, o que lhe lembrou que teria jogo no dia seguinte e lhe fez ir até a mesinha quadrada, com designe xadrez, para pegar o jornal embrulhado do dia anterior. Não abriu, apenas segurou e observou ainda mais o lugar, queria guardar a imagem.

O teto era revestido por tecidos, ao estilo árabe, de cor branca e lilás, o abajur, ao lado da cama box gigantesca, sob o criado mudo de gaveteiros brancos, era de vidro, com nuances de cores verdes e lilás, em um formato retangular vertical. Em frente ao sofá, abaixo da mesinha, um tapete que parecia muito macio, feito de algum tecido que lembrava um urso e tinha cor branca, assim como as cortinas gigantescas, de renda sob o tecido, dispostas sob o vitral da varanda.

O banheiro era rústico, com madeiras que brilhavam tanto ou mais que os acessórios de prata que decoravam os objetos sob a pia. Leu o jornal no banheiro e, embora parecesse estranho pensar assim, não havia novidades. Resolveu tomar um banho, não esperaria a garota acordar para curtir com ele o maravilhoso sol que reluzia pela fresta da cortina rendada. Despiu o que restava da roupa do dia anterior, ligou a banheira e esperou que a água fluísse olhando a si mesmo no reflexo do espelho.

Há muito tempo o que mais gostava de fazer era administrar as mudanças de seu reflexo, ter o cuidado de receber bem as transformações de seu corpo, de sua mente. Era como um ritual, dizer olhar para si mesmo e para sua história. Fazia com que se sentisse muito mais forte, lembrando de tudo o que passara até ali. Então pensava em voz alta: “cuidado com o investimento a curto prazo Cabal”, pois ele não acreditava em sorte, mas sabia que quem corria, alcançava e só sobreviveria quem fosse forte e quem sofresse, quem cansasse. Ele acreditava na mudança, por isso seu sorriso era como o de uma criança, tendo esperança e agradecendo, sem deixar de reconhecer que a vida estava só no começo.

A banheira estava pronta, jogou alguns sais de banho masculinos que estavam por lá, parecia tudo planejado para ele. Entrou na banheira, que era redonda, como uma hidro, mas ao estilo de todo o quarto, também era dos anos setenta ou oitenta. Mergulhou o corpo todo na água e tentou pensar em nada, voltou à superfície e abriu os olhos verdes, agora molhados. Deus um sorriso agradecendo a Deus pela vida e pela família, fazendo uma breve prece pelos que ele amava, concentrando-se em estar bem consigo e com tudo ao seu redor. Era quase um banho de purificação, mantendo tudo o que era ruim longe dali.

Seus amigos já estavam na piscina, ele chegou e cumprimentou a todos. Vestia uma faixa vermelha no pescoço, um boné com PROHIPHOP na cabeça e uma camisa descolada, combinando com o lenço. O calção era jeans em uma cor que oscilava entre o verde e o cinza desbotado, tênis adidas alto, branco. Flash foi o primeiro a cumprimentar, sempre muito rápido e ansioso, fez uma brincadeira, ambos sorriram e Cabal cumprimentou os demais.

A piscina estava lotada, eram quase 16h, as mulheres pareciam vindas do céu, eram deusas gregas, egípcias, orientais, afros, celtas e o que mais pudesse ser imaginado. Nunca havia visto uma piscina com tantas mulheres lindas, eram como se todas lá fossem modelos escolhidas a dedo para usar os menores e mais apetitosos biquínis que ele já havia visto. Sorriu comentando alguma coisa com os amigos, que olharam ao redor concordando com a paisagem. Ele tinha um sorriso de lado e o pensamento de sempre “mulher brasileira em primeiro lugar”. Lembrou da loira no quarto e resolveu ir até lá, dar uma atenção.

A porta do quarto que levava a piscina estava aberta, ele estranhou. Havia uma mesa de café ao lado da cama, com algumas comidas que ele percebeu serem de seu extremo agrado e que, pelo jeito, era um café para apenas uma pessoa. Olhou para as coisas no quarto, com o breve pensamento de que alguém teria entrado e pego algo, mas estavam todas lá, com exceção da garota.

-Com licença senhor – ele levou um susto, uma mulher baixinha de cabelos curtos avermelhados e roupa de camareira estava bem ao seu lado direito juntando do chão algumas das roupas dele. Ele não a havia notado, talvez por estar quase atrás da porta – A moça pediu para lhe entregar isso senhor, disse que estava atrasada, mas que não esqueceria a noite.– estendeu a mão para ele.

Cabal agradeceu, sorriu para a mulher com educação e abriu o bilhete que havia recebido da loira. Um pequeno papel dobrado com textura de cor azul celeste. Havia seu nome escrito com caneta-tinteiro preta por fora e dentro dele, em letras corridas: “Ela é mais uma cortesia dos organizadores”. Ele engoliu a leitura a seco e seus olhos se arregalaram. Lembrava perfeitamente da garota seduzindo-o na noite passada, conversara com ela sobre a vida e soube até de algumas coisas como uma faculdade de direito, trabalho como modelo fotográfica, pai dono de uma empresa de administração, tanto que a moça parecia confiável e esperta, além de inteligente e bonita, mas, pelo jeito, também era ousada e mentirosa.

-Moça. – ele chamou atenção da camareira, que parecia muito rápida, pois a bagunça estava quase toda organizada e ela só estava ali há cinco ou dez minutos, pelas contas dele.

-Pois não senhor?

-Desculpe, tem certeza de que quem lhe entregou o bilhete foi aquela senhorita loira, de olhos castanhos?

-Sim senhor.

-E, desculpe de novo por perguntar, mas... ela trabalha para o hotel?

-Não senhor.

Percebeu que dali não viria muita informação. Seria mesmo uma prostituta com cortesia do tal organizador do evento? O bilhete estava um tanto óbvio, mas quem era esse cara? Aliás, eram mais de um, porque dizia ‘organizadores’. C4 ficou meio bolado com aquilo, resolveu sair e conversar com os amigos. As coisas estavam vindo fáceis de mais.

-E ae tio, qual é, que ta pegando? –Eron.

-Que que é essa cara de bolado aí mano? – Pool.

-Sei lá cara, tô meio encanado com essa produção ai, ta ligado? – ele se sentou ao lado de Pool e pegou uma bebida.

-Ué, qual é a neura truta? -Milk

-Sei lá cara, tem umas paradas aí que não se encaixam, saca? – bebeu um gole e balançou a cabeça em sinal negativo.

-Tipo o que? Tô entendendo nada. Desenrola tio. – disse Duplo S, bebendo gim.

-Cê ta branco que nem leite tio, relaxa ae. – Eron, que passou-lhe um cigarro. Estavam todos uns próximos aos outros, em cadeiras brancas, ao lado da piscina, sob uma cobertura contra o sol. Todo o “time PRO” foi convidado a desfrutar do hotel, embora só Cabal tivesse a suíte e as maiores regalias. Claro que eles pouco se fodiam pra café na cama, se podiam curtir do mesmo jeito.

-É que eu dormi tarde, quer dizer cedo – eles riram – e não comi nada ainda.

-Ué, o serviço de quarto não bateu lá majestade? – Pool precisava tirar uma onda.

-Pior que foi, uma mina tava lá limpando tudo, vi a mesa de café, mas depois de receber isso aqui – ele estendeu o bilhete para Pool – nem lembrei de comer nada.

-Que porra é essa cara? – disse passando para os outros lerem.

-Eu tava lá com uma loirona, ta ligado? A gostosa do shortinho branco... Fiz o serviço ontem a noite e pá, ela ficou dormindo ali no quarto, mas quando voltei na baia a mulher tinha sumido. Vazou e deixou isso ae.

-Loira fantasma ou dama das camélias, seu serviço de quarto está mesmo melhor que o nosso. – disse P.I lendo o bilhete.

-Isso que me deixa desconfiado cara. Esse show ta fácil de mais, saca?

-Relaxa mano, não é nada isso aí, não. – Eron.

-E o que você me diz dessa perfeição mano? – ele abriu os braços e olhou ao redor. – um paraíso pra um vagabundo? Isso só pode ser nome de livro. Pra mim, não cola.

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