Parecia
acordar cheio de ditados machistas. Não havia uma aproximação que resultasse em
abraços doces, carinho ou manifestações de afeto. A noite acabava quando
começava o dia e, por ser dia, transformava a fera gentil em uma besta
descontrolada. Não havia meio
termo naquele relacionamento; era "ou vai ou racha".
Ela soube desde o início que
não haveria gentileza, soube também que passaria por um processo de putrefação,
onde os segundos lentos do dia seriam torturantes em suas aulas de filosofia e
explanações sobre o conteúdo que se referia ao moral, à ética, ao raio que
partisse cada desgraçado brocha que dividia a sala de estudos com ela. Seu coração,
apertadinho desde criança, havia sonhado demais, contagiando a porcaria de
mente indulgente, frágil e pensativa que levava na cabeça. Ana havia errado por
um motivo tolo. Havia amado demais.
Quando
conheceu Raul seu coração ficou miúdo, as pernas pareciam não ser o suficiente
para deixá-la de pé. Necessitava de apoios, de bancos, de muletas, qualquer
acento ou objeto que estabilizasse o corpo seria bem vindo, principalmente
porque os batimentos cardíacos funcionavam, de tal maneira, a deixá-la trêmula
e incomum.
Os primeiros
meses sempre são um martírio de felicidade. Ana sorria com os dentes, com a
boca, com a alma transmutada em corpo irradiando o prazer sublime de viver.
Iniciou um trabalho voluntário cinco quadras de sua casa em uma escola pública
onde as crianças não tinham sequer a noção de que o mundo existia pela razão,
em formulações de sentindo sumamente existencialista. Andava pelos paralelepípedos
ensaiando uma fala sobre o “Penso, logo existo”, de Descartes, mas o que seu
coração dizia não estava totalmente de acordo. Imaginava existir naquele
momento, sim e completamente, porque amava e recebia o amor de seu homem em
práticas carnais que a elevavam de tal maneira a sentir a ponta dos dedos
tocando o céu, voltando, tocando o inferno, voltando e, por fim, estacionando em
sua pele alva-avermelhada, no purgatório dos desejos. Naquele tempo, Ana sorria
feliz, por existir.
Desafortunadamente,
o mundo não gira em torno dos três primeiros meses e como em um conto de fadas
que acaba matando as fadas e onde prevalecem as abóboras murchas de carruagens
inexistentes, a professora de filosofia sentiu suas pernas tremerem outra vez, pela rudez daquele que a faria sofrer o inquestionável em seus
próximos anos de vida.
Abria a mão e
contava cinco. Cinco anos sofrendo as intervenções daquele humor perturbado,
cinco que não sentia mais o ar entrar em sua pequena casa de tijolos rebocados
e pintados de amarelo. Cinco anos que a fumaça do cigarro Mallboro parecia não
sair de seus cabelos, sufocando-a desde as narinas, passando pelo pescoço e
chegando aos pulmões, de maneira tal, que as descrições seriam banais para a
infelicidade que sentia.
As noites
regadas a sexo brutal e sujo eram incomparáveis aos dias banhados de um lodo
tão fétido quanto o odor daquele ribeirão próximo à favela. Ana sentia o caos
em seu mundo e, por ocasião do desassossego que a rondava, suas produções profissionais
eram tão rudes quanto os momentos que compartilhava com seu companheiro.
Cada classe
parecia odiá-la mais, as intervenções pedagógicas para que tratasse os alunos
com maior gentileza eram inúteis. “Sou funcionária pública”, era o que dizia.
Parecia sair de uma caverna, todas as vezes que pisava na rua, mas, em contra
partida ao mito, Ana não regressava contando o que havia de bom e belo a ser
desfrutado fora dali, pois saia com ódio e rancor, dividindo o que havia de
amargo em sua existência, até que, simplesmente, já não fazia nenhum sentido
estar ali. O máximo que poderia exigir de si mesma eram explicações decentes de
um conteúdo didático mal elaborado.
Chegara ao
ponto de detestar a espécie humana. Nem homens, nem mulheres. Seu primeiro
relacionamento havia sido infantil e pálido, comparado aos demais. Havia ali,
de qualquer maneira, algo de puro. A pureza e a inocência do primeiro amor. Ana,
no entanto, havia deletado aquele sentimento.
Entre os
jardins de Dona Sonia e de Seu Camargo, brincava de pega-pega, pulava corda e
sujava o vestido no gramado molhado pelas chuvas de primavera. Ana não
lembrava, mas Thomas era o nome dele. Daquele menino baixinho, de sardas na
cara, um olhar meio perdido por trás das lentes com aros redondos. Dos detalhes
lembrava-se bem. Tinha cabelos ruivos e espetados, com a pele branca, feito a
dela, magro e desengonçado. “Me dá um beijo?”, foi a pergunta que levou todas
as férias de verão para fazer, e ganhou em troca um balançar de cabeça
positivo, um sorrisinho sem dois dentes de leite e uma lambida nos lábios,
seguida da mão dela levantando-se e segurando as duas cabeças. Ana fechou os
olhos e tratou de lembrar como seus pais faziam nos sábados de madrugada, era
só tirar a língua da boca e mexer de um lado para o outro. “Aninha!”, ouviu a
voz estrondosa de seu pai gritar. Estava perdida.
Agora podia
recordar que a vida lhe ensinara desde pequena que o amor doía. Levara uma
surra do pai e, de certa forma, aquela foi a primeira de diversas palmadas que
levara ao longo dos anos. Na cara, na bunda, nos braços. Seu pai havia perdido
o emprego, sua mãe sustentava a casa, Aninha estudava no primário e a bebida
chegou em seu lar sem convite, instaurando-se no quarto de seus pais, na sala,
na cozinha e nas marcas que ficaram em seu corpo de criança. O pequeno Thomas
ela nunca mais viu.
Bem, de todos
modos, agora era uma mulher e, quanto mulher, teria de superar aquelas
agressões. Sabia que se algum dia Raul lhe erguesse a mão, não hesitaria em
chamar a polícia, mas ele, coitado, não lhe fazia nada. Era o jeito dele,
afinal. Gostava de fazer amor com um pouco mais de intensidade, pensava Ana.
Ou, melhor dito, talvez Ana não pensasse, talvez criasse essa história para
abafar o fato de que seu marido, ou seja lá o que fosse aquele monstro que
habitava sua casa há cinco anos, lhe arrancava as roupas de maneira brusca e
lhe fazia sentir muita dor, prazer nenhum, muito ódio, amor nenhum, muita
vergonha e respeito algum.
Ana, como
muitas mulheres que haviam aturado o desrespeito e a violência doméstica quando
criança, continuava exercendo o papel da garotinha frágil de índole errada.
Descontava sua tristeza e amargura em sala de aula e, de alguma maneira,
desprezava a espécie humana desde seu pai e sua mãe, até os alunos que
levantavam os braços a procurava de respostas para questões filosóficas.
“Ela precisa
de ajuda”, era o apelo da coordenadora pedagógica que, após três anos de
observações, havia notado um comportamento diferenciado na professora de
filosofia. Não era que estivesse pouco se lixando para a saúde dos professores,
longe disso, o fato era que a coordenadora sempre andava ocupada e havia
esquecido de comunicar a junta médica sobre o problema da professora Ana.
O psicólogo,
atento e responsável a seu trabalho, sorriu gentil à coordenadora dizendo que
entendia perfeitamente quanto trabalho ela teria em mente, respondendo serem
naturais pequenos esquecimentos, em meio ao emaranhado de documentações, os
quais ela teria de cuidar. Afinal a instituição era gigantesca, havia um corpo
docente extenso e nenhum profissional era perfeito naquelas condições. Mais
calma e com um sorriso de quem havia sido compreendida, a mulher saiu do
escritório com sensação de missão cumprida.
Três dias
depois, Ana despertava dolorida e com a sensação de que iria explodir em choro
a qualquer momento. Não bastava o quanto se doava àquela porcaria de escola,
haveria de passar por uma avaliação psicológica no período da tarde, após ter
uma das piores noites de sua vida.
Deu as aulas
com excesso de mal humor, evitou olhar para a cara da coordenadora que havia
puxado seu tapete e, por fim, saiu do estabelecimento de ensino, rumo ao escritório
do tal psicólogo.
“Seja
bem-vindo”, era o recado no tapete da porta fechada, no sétimo andar. Ana
sentou-se e deixou a bolsa de lado, escolheu uma revista de moda, sem prestar
atenção no que estava lendo, pensando em como controlar seus gestos e palavras,
a ponto de deixar-se parecer comum e normal. Lembrava-se do que havia lido
sobre comportamento e deveria evitar olhar em determinadas direções, para que o
homem não analisasse em que, efetivamente, estava pensando.
Ao fim de
cinco minutos esperando seu horário – havia chego 15 minutos adiantada – se deu
conta de que psicólogos estudavam para serem adivinhas, um tipo de ciganos ou
bruxos do século XXI. Olhavam para você, analisavam seu comportamento, sua fala
e, pronto, você estava absolutamente perdido. Não fazia ideia de quem seria o
psicólogo, mas ouvira falar da figura quando uma de suas colegas de trabalho
chegou comentando sobre a consulta que marcara à filha, cerca de dois meses
atrás. Não era o seu tipo, levando em conta que, havia cinco anos, nenhum homem
poderia se esforçar, suficientemente, para se tornar um tipo que lhe atrairia.
A porta do
consultório abriu e uma senhora saiu rindo, com sua muleta auxiliando nos
passos. “Você é mesmo uma graça, Dr. Thomas”, o homem atrás dela tocou de leve
o ombro da velha e, com um sorriso afetuoso, respondeu que, na verdade, era
aquela mulher uma joia preciosa.
Ana observou a
cena com um pouco de asco. Estava na cara que o barbudo ruivo era tão falso e
hipócrita quanto sua coordenadora. Talvez, até, fossem amantes.
“Senhora De
Castilho?”. Ana levantou-se, cumprimentou a mão que lhe foi estendida e tratou
de mirar nos olhos, sem desviar o olhar. Havia lido no Google, cinco minutos
atrás, sem ter certeza de para qual lado deveria olhar, que o ideal era mirar
nos olhos, assim não transpareceria nenhuma emoção específica, apenas
segurança. Estava torcendo para não parecer presunçosa ou triste, pois havia
essas hipóteses na lista de alternativas.
“Boa-tarde,
como vai?”
“Estou bem,
doutor”. O homem deu espaço, apontou para a poltrona e pediu que a mulher se
sentisse à vontade. Sentou-se, de imediato, atrás de sua mesa e tratou de
preencher alguns papeis enquanto perguntava dados de confirmação. Ao final,
ergueu o rosto e abriu um sorriso.
“Então, Ana,
como foi a sua manhã?”.
Ana queria
olhar para baixo, mexer as mãos e os pés, se encolher talvez, mas lembrava de
que a postura na poltrona deveria ser reta, o olhar seguro, as mãos sem
paradas, sem qualquer expressão.
“Correu tudo
bem”. Não poderia dar respostas fechadas ou ele pensaria que ela estava na
defensiva. “Sabe como é, o mesmo de sempre...”, teria de mudar essa frase,
essas palavras poderiam significar que ela estava entediada. “... filosofia
abrange tanto sobre a existência, e a existência é tanto para o ser humano, que
acabamos conversando, basicamente, sobre a vida”. Ela lembrou de dar um pequeno
sorriso ao final, para enfatizar que o assunto “trabalho” a deixava feliz.
“Certo”,
Thomas fez uma observação em sua folha, Ana estava louca para saber de que se
tratava. “E você tem feito isso, dar aulas de filosofia, há quanto tempo?”. Ana
pensou que estava em vantagem naquele momento, seria quase como uma entrevista
de emprego.
“Bem, eu
costumo dar aulas desde o final do ginásio, quando fiz um curso de extensão na
França”.
“Interessante,
você costuma viajar?”. Merda, ela deveria ter pensado em algo mais próximo.
Falar sobre viagens daria muito pano para a manga e ela poderia se perder nos
pensamentos premeditados.
“Viajei
algumas vezes, especificamente, para a França, na casa de meus tios”.
“Aqui consta
que seus pais faleceram, Seus tios vieram para o velório?”.
“Sim.
Estiveram aqui”. Era mentira.
“Você é
casada, Ana?”. Ela não deixava os olhos saírem dos olhos dele, Thomas, no
entanto, não só mirava os olhos dela, como não deixava de abaixar a cabeça para
observar o que estava anotando em sua folha e levantava o olhar, novamente,
observando-a dos pés a cabeça, voltando a se concentrar nos olhos e,
sucessivamente, repetir todos os gestos. Devia ser uma tática para deixá-la
enlouquecida e descontrolada. A cada pergunta – e todas pareciam,
excessivamente, pessoais e detalhistas – Thomas seguia observando-a cada vez
mais, anotando, cada vez mais, questionando, cada vez mais.
Foi na
trigésima questão – e ela havia contato – que o controle foi esgotado
definitivamente. Ana levantou e se aproximou da janela. Respirou fundo, voltou
e sentou-se.
Sua estatura
mediana e seu corpo frágil combinavam com o vestido que usava, nada florido e
primaveril, como na infância, mas Thomas podia lembrar com alguma facilidade de
como o perfume continuava idêntico ao daqueles tempos. Ao ver a moça se
aproximar da janela e voltar, com aquelas pernas finas, escondidas pela
meia-calça de inverno, resolveu deixar seu lado profissional um pouco de lado,
embora acreditasse ter feito isso desde o princípio, quando leu o nome em sua
ficha.
“Você precisa
de ajuda Ana?”. Ela parecia respirar mais rápido, não só pelo ódio que sentia
no atrevimento dos olhos daquele patético, como pela mão dele que a tocava
agora, de maneira a deixá-la indefesa. Se ele a tocasse, estaria indefesa.
Thomas sentiu
o que acontecia, no exato momento em que tocara sua pele. Milésimos de segundos
atrás, sabia que o ideal para aquele dia seria seduzi-la, convidá-la a um jantar
informal, relembrar as brincadeiras do verão que passaram juntos, fazê-la
lembrar-se dele, dizer que conhecera seus tios, amigos da família dele, em
Paris, e que os velhos haviam lastimado não estar no enterro dos pais de Ana.
Ansiava dividir com ela que sabia mais da moça do que Ana imaginaria, mas
naquele princípio de toque, quando apenas seus dedos haviam encostado no braço
branco da mulher indefesa, Thomas viu o semblante da moça mudar, os olhos
tornarem-se turvos de lágrimas e o corpo deixar de responder às vibrações que
ele havia notado minutos antes. Desgraçado. Maldito fosse o desgraçado que
havia violentado aquela mulher.
“Está tudo
bem”, o psicólogo falava mais alto do que o homem. O homem a sacudiria em busca
de um nome, perguntaria quem foi, perguntaria onde estava e sairia atrás do
maldito, em busca de vingança. Afinal, que tipo de monstro poderia machucar
aquela flor? A mulher era toda um copo de leite, com a fragilidade de um lírio,
como haveriam de maltratá-la? Thomas, no entanto, voltou para trás da mesa,
como um bom profissional. Ela precisaria de confiança, de segurança. Distância,
em primeiro lugar. Voz baixa e calma. Um tratamento com sua colega psicóloga
seria o ideal, nada de homens por um bom tempo, até que recuperasse a segurança
em si mesma. O doutor agia com rapidez, seu pensamento voava baixo, buscava
soluções, tratamentos eficientes. O homem gritava por dentro, com tanto ou
maior ódio do que o que transparecera no olhar daquela vítima. Thomas se
amaldiçoava por haver se aproximado e pressionado tanto com suas perguntas, com
seu olhar, com suas palavras.
Ana, no entanto,
percebera suas falhas. Estava perdida, o bruxo, o cigano, o mago, havia lido em
seu olhar, sem precisar tocar a palma de suas mãos, tudo o que havia de mais
íntimo nela. Debruçada entre os próprios braços, Ana se pôs a chorar. Um olhar
e um toque haviam delatado todo seu infinito particular.