Tomou mais uma taça de vinho e, suavemente, sentiu a bebida aquecer a seu corpo. O formigamento se espalhava desde a parte elevada da cabeça, até as partes íntimas, por isso ela se movia incomoda, pouco inclinada, pouco arqueada, esparramada no sofá. Usava o roupão branco oferecido pelo hotel. Estar em um hotel parecia tolo, mas tão excitante, talvez fosse o vinho e a voz que saia do televisor, conectado a um canal musical da digital. O rosto dele estava estático na fotografia que serviu de imagem para a capa do último CD. Talvez metade daquelas letras fossem escritas para ela, mas Leonel jamais saberia que a havia descrito em suas canções tão doces e inocentes. Lenah, no entanto, parecia pouco inocente, transparecendo o desejo que sentia em seus póros abertos e pelos eriçados. Permanecia com os olhos fechados, imaginando a boca que pronunciava cálidas palavras, talvez com lábios suaves, tão suaves e tão macios quanto os dedos que poderiam, sem muitos rodeios, tocar sua pele dourada. Leonel era uma il usão.
A cabeça girava de uma maneira constrangedora, Lenah deixou o copo na escrivaninha que estava próxima a poltrona e levantou cambaleando. Ela podia jurar que o barulho vinha da pequena cozinha instalada atrás da bancada que dividia o quarto, mas era realmente a campainha, berrando aos gritos que ela fosse até a porta abrir para uma pessoa qualquer. A moça não se atrevia a tentar adivinhar quem poderia ser, tratando-se daquele quarto de hotel, tão distante do mundo, em uma cidade que ela havia sonhado conhecer a vida toda e que lhe pertencia. A ela e a mais ninguém.
Por um momento seu coração acelerou e um estreito sorriso passeou por sua boca. Lenah queria, enlouquecidamente, que fosse o homem da foto. Com ou sem os óculos, com ou sem o nó na gravata, com ou sem o rosto sério que a deixava admirando a imagem, ao passo que analisava a vida do artista, assim como um poeta analisaria La Gioconda, em busca de um motivo para o falso sorriso. Não. Não poderia ser ele.
Sem muita alternativa, Lenah prendeu o roupão frouxo e girou a maçaneta. A porta não tinha um olho mágico e lhe faltava um segura-ladrão. Pouca proteção e muita dor de cabeça, a moça sentia que não seria uma visita apropriada.
De soslaio, a imagem foi se formando pouco a pouco, primeiro como uma sombra, depois como um corpo vestido e logo como um homem de estatura mediana que lhe deixara, tão “por etapas” quanto fora a formação imagética daquele ser, estava ligeiramente apavorada. Talvez ela devesse parar de beber, afinal.
Com os olhos marejados e com o coração acelerado, seguia segurando o trinco da porta, sem abri-la definitivamente; sem sequer mover a boca em um sorriso ou em qualquer tentativa de formação de palavra. Lenah ficou ali, muda, hipnotizada e desacreditada.
Como se todo o seu sossego fosse embora com o bater de asas de um beija-flor, a moça sentiu a escuridão tomar conta de seus olhos e, sem alternativa, sentiu seu corpo cair, fechando a porta com uma pancada perigosa, que lhe causou um pequeno corte na testa.
Leonel se apressou em abrir a porta, com cuidado suficiente para não machucá-la, ainda mais. A mulher havia despencado em sua frente, com a cabeça arremeçada à porta, trancando-a por dentro. Foi necessário pedir ajuda da camareira, que, agora, lhe dava mais uma mão, ao erguer Lenah até a cama.
- Precisaremos de um paramédico.
- Sim, senhor, senhor Leonel. Já chamamos a ambulância, como o senhor pediu.
Ele estava tão apavorado que havia esquecido já ter solicitado, pelo menos três vezes, uma ambulância. Como aquela situação saiu de seu controle? A interrogação e o pavor de haver machucado a moça, lhe faziam sentir péssimo.
- Ela deixou contato na recepção? Algum parente, amigo, esposo?
- Não senhor. - A camarera fazia uma compressa com água morna, para tentar estancar o sangue da testa. Sabia da preocupação de seu patrão com os hóspedes e sabia, também, que ele e o senhor Leonel eram muito amigos. A mulher não falharia em seu auxílio e teria o benefício por se sair bem no que era paga para fazer.
- Já comunicou ao gerente?
- Ele estará aqui em um minuto, senhor.
A demora para receber ajuda o afligia. Como o mundo insistia em parar toda vez que ele se metia em encrencas? Parecia até que ele estava destinado a ser uma piada das situações, cada ocasião mais estranha do que a outra, colocando-o.
Foi apenas quando a equipe chegou e afastou-o da moça que Leonel percebeu sua imagem na tela de tv. Uma de suas músicas pausadas, o cheiro forte de bebida e a ligeira organização do recinto, com excessão da poltrona, onde a mulher deveria estar sentada, no momento em que ele tocou à porta.
Leo recebeu uma série de mensagens, semanas antes. Achava aquele contato muito estranho e até sugestivo. Conseguiu se livrar de alguns, em meios sociais, mas agora havia sido mobilizado em seu celular, em sua caixa postal e podia jurar que havia visto uma mensagem no outdoor da principal rua da capital. Sabia que poderia ser algum tipo de paranoia de sua parte, o que era ocasionalmente, natural, Mas quando relia aquilo que haviam lhe enviado e todo o sentimento e poesia que estavam contidos ali, naqueles versos, não conseguia permanecer indiferente. Portanto, se a pessoa que havia lhe enviado aquelas mensagens estaria, de fato, no hotel de seu grande amigo, no apartamento 13 do terceiro andar, então ele tocaria a porta e lhe agradeceria pelo carinho. Pessoalmente. Ainda que naqueles dias se considerasse um louco. Estava apaixonado pela voz sem dono e não sabia, sequer, se era mesmo uma mulher.
Agora, ali, diante da moça que caira, literalmente, a seus pés, percebia que a loucura havia sido transferida e que, de alguma maneira, existia de fato - fosse ela ou não - uma conexão entre ambos.
- Minha foto.
Leonel observava o recinto e, em meio aos protestos de um dos paramédicos, requisitando a liberação do quarto, ansiando espaço para a paciente, piscava os pequenos olhos, procurando conter as lágrimas que lhe viam em mente.
- Que fatalidade. - Disse uma das camareras, à porta.
Leo pensava o mesmo, sem dizer. Seria ela, afinal?